ONDE ESTÁ DEUS NA ALCA?
Deus luta conosco por uma negociação justa

Pe. Dr. Juan Hernández Pico
 

Introdução e estado da questão

A ALCA: desafio ético e teológico

O estudo sério sobre o processo de negociação que pode desaguar na assinatura do acordo da ALCA traz à baila um conjunto de resultados que parecem exigir uma reflexão ética e teológica sobre o desafio que representam para os povos da América, tanto para os ricos e fortes do Norte como, de modo especial, para os mais pobres e fracos da América Latina (AL) e do Caribe.
Os desafios sempre nos levam a pensar e elaborar respostas que os encarem a partir de níveis diferentes da existência humana. Para todo ser humano é indispensável fazê-lo no nível ético. O que se pode pensar sobre a ALCA a partir de um compromisso ético com a promoção humana dos povos canadenses, estadunidenses, latino-americanos e caribenhos? Para pessoas, além disso, que crêem em Jesus Cristo, outro destes níveis é o teológico. O que é que se pode pensar a partir da nossa fé cristã diante da ALCA? Como, diante desse tratado, apresentar as razões da nossa esperança (cf. 1Pd 3,18)? Com efeito, os resultados da análise parecem ter o potencial de nos levar ao desespero.

Resumo do processo de negociação da ALCA
Vamos resumir esses resultados. Acha-se na negociação intergovernamental que nos está levando para a Área de Livre Comércio das Américas um postulado: o mercado é sempre a solução para todos os problemas do desenvolvimento, enquanto o Estado é sempre um problema a mais. Este postulado é utilizado, além disso, de forma ideológica, isto é, do ponto de vista dos interesses dos que dominam mais e melhor o mercado. Por isso, este postulado quase dogmático é aplicado com enorme rigor aos países em via de desenvolvimento e com notável flexibilidade aos já desenvolvidos. Aqui tem início uma assimetria fundamental na negociação ou, em palavras menos refinadas, uma notável desigualdade.

Trata-se de uma negociação que, além disso, se faz debaixo de extorsão e chantagem. Os grandes subsídios agropecuários dos EUA, as medidas contra a queda temporária dos preços por mecanismos extrínsecos ao mercado praticados pelas empresas transnacionais (medidas antidumping), os mecanismos de proteção de bens sensíveis para os EUA acham-se subtraídos à negociação no processo da ALCA, e só podem ser negociados talvez na OMC, enquanto todos os subsídios e os mecanismos de proteção de bens sensíveis para a AL estão submetidos a negociações. Formula-se, às vezes, a chantagem sem disfarces, como quando o Representante Presidencial dos EUA para o Comércio Internacional, Robert Zoellick, afirmou numa entrevista, em novembro de 2002, que, “se Lula não aceitar a ALCA, o Brasil ficará isolado e só lhe restará negociar com os pingüins da Antártida”. Eis a prepotência da Realpolitik em que se move a única superpotência do mundo atual. Só contam os seus interesses: levantar um bloco econômico comercial no hemisfério ocidental que os proteja do bloco constituído pela União Européia (UE) e da possível hegemonia, no futuro, do Japão ou da China no Leste da Ásia. Algo semelhante ao que se faz comunicando ao mundo que os governos que não apoiarem a política dos EUA para o Iraque serão punidos.

Mais grave ainda é que as possíveis disputas entre as empresas (transnacionais) e os Estados sejam retiradas dos circuitos judiciários estatais do direito litigioso administrativo, comercial e civil e transferidas para cortes de arbitragem, cujas normas jurídicas e cujas sentenças estão acima do direito constitucional dos países. É evidente a cessão da soberania. E não é que se trate de entrar na corrente de supranacionalidade para a qual tendem as Nações Unidas e se reflete, por exemplo, no Protocolo de Kyoto e na Corte Penal Internacional (ambos não assinados pelos EUA), assim como na norma de não se declarar unilateralmente guerra sem contar com uma resolução do Conselho de Segurança (limite transposto pelos EUA no recente caso do Iraque). Trata-se simplesmente de um abuso de poder fundamentado outra vez sobre o dogma de que o mercado protegerá os cidadãos melhor que o Estado. Trata-se de elevar o “lucro cessante”, isto é, os lucros possíveis, mas não realizados, de qualquer empresa transnacional radicada nos EUA a partir do seu lugar apropriado nos cálculos contábeis orçamentários e nos balanços até um lugar na jurisprudência que dá todos os direitos ao capital em prejuízo dos trabalhadores, da promoção do desenvolvimento nacional e da proteção da saúde e do meio ambiente.

É também muito grave a tendência a reforçar a privatização e a liberalizar o mercado de bens, sem antes criar novos e sólidos postos de trabalho que substituam aqueles que, sem dúvida, a nova competição vai eliminar. E mais grave ainda é a liberalização do mercado de capitais sem dar a devida atenção a “seqüências e ritmos” e sem nenhum controle que impeça que a volatilidade dos capitais “voadores” tenha como resultado brutais crises financeiras. A longo prazo, com a ALCA, os Estados da AL e do Caribe nem poderão governar sua economia, nem formular projetos nacionais próprios que possam integrar-se regionalmente em ritmos e em condições razoáveis. Mas, além disso, não se prevê que esse acordo, sendo como parece tão importante, seja submetido a procedimentos radicalmente democráticos, por exemplo, a um referendum, como se submeteu na UE a cessão da moeda própria e a adesão à única moeda, o Euro – entre outras medidas e também objetivos ao longo do
processo de integração.

Agravando a desigualdade, a ALCA será, em princípio, uma vez ratificado o tratado, obrigatória e irrevogável para todos os países que assinarem o tratado, exceto os EUA, cujo Congresso certamente poderá modificá-lo futuramente. Enfim, também ao contrário do que ocorreu na UE, não se tomarão medidas financeiras preferenciais em relação aos países mais fracos, nem se incluirão no corpo do acordo cláusulas sociais ou trabalhistas, por exemplo, nem tampouco ecológicas, ponto em que os governos da AL se esforçam com maior interesse do que o norte-americano para não perder o que entendem ser vantagens comparativas da mão-de-obra barata e das normas meio-ambientais pouco exigentes. Uma visão escandalosamente de curto prazo! Aliás, no quadro da ALCA tudo se poderá mover livremente: os capitais, os produtos, os serviços; só não haverá livre trânsito de pessoas através das fronteiras!
É sobre esses resultados, presentes já na órbita do TLCAN após dez anos de sua vigência, especialmente no México e no Canadá, que se pergunta pelas nossas esperanças. Como dizia em seu tempo o Concílio Vaticano II, “o que pode(m) esperar” desta proposta de sociedade os povos da AL?

1. Perspectivas éticas
O presente curso da história levanta um desafio ético
A primeira perspectiva que devemos examinar e superar é a de que tudo isto pertence ao campo de especialidade dos técnicos, dos conselheiros econômicos e políticos, dos próprios governantes e seus negociadores, e de que não é de nossa incumbência. Com isso fecharíamos as portas de toda auditoria ou vigilância responsável da sociedade civil em matéria econômica sobre o poder político. Além disso, devemos enfrentar uma espécie de determinismo da evolução atual do mundo, depois da implosão e fragmentação dos socialismos realmente existentes, especialmente do soviético, embora não seja este o caso do chinês que, por mais inserido que esteja no capitalismo, ainda abarca uma em cada seis pessoas sobre o planeta. Neste caso, acontece como se a convicção enunciada por Francis Fukuyama em 1990, na realidade, fosse também nossa: chegamos ao fim da história, isto é, à sua meta, e a única coisa que resta a fazer é aprofundar o capitalismo e aperfeiçoá-lo. Este determinismo (não o de Fukuyama, mas o nosso), com certo tom fatalista, sobre o triunfo irreversível do capitalismo e o valor inquestionável de sua atual etapa de globalização no novo “capitalismo informacional”, surge do assim chamado desencantamento do mundo (morte das utopias), apela a um sóbrio realismo social e postula que é verdadeiramente o império do mercado que pode levar cedo ou tarde ao reino da liberdade e até ao reino da justiça. No entanto, pensamos que ainda está de pé aquilo que na perspectiva ética foi com vigor afirmado pelo Vaticano II: “O presente curso da história é um desafio que força as pessoas a procurar uma resposta”.

O fascínio diante da civilização estadunidense construída sobre pés de barro?
Existe hoje uma espécie de fascínio diante da civilização dos EUA, diante do assim chamado “estilo americano de vida” (american way of life), que os eleva praticamente à categoria de única saída para a humanidade, de mar para o qual confluem todos os seus rios. No fim das contas, forja-se um novo ídolo diante do qual o mundo se ajoelha com tanta devoção como aquela dedicada aos deuses das religiões humanas. Não se pode esquecer, todavia, que, entre todos os países desenvolvidos, os EUA são aqueles que apresentam os piores índices em termos de distribuição de renda, índices que continuam crescendo rumo a uma sempre maior desigualdade.

Com efeito, a proporção da renda nacional que cabe aos 20% da população com menores rendimentos... caiu de 4,2% em 1968 para 3,6% em 1993, mas os 20% com rendas mais altas viram sua proporção aumentar de 42,8% naquela data para 48,2% em 1993. Em termos simples: da renda nacional os ricos recebem dez vezes mais que os pobres.

Esses dados são ainda mais eloqüentes nas comparações estabelecidas por Manuel Castells:
A relação entre o salário total dos cargos de direção (nas empresas estadunidenses) e o salário total dos trabalhadores passou de 44,8 vezes mais em 1973 para 172,5 vezes mais em 1995. O 1% mais rico aumentou a riqueza em 28,3% no período 1983-1992, ao passo que os ativos dos 40% inferiores das famílias norte-americanas caíram 49,7% durante o mesmo período... (Finalmente) a porcentagem de pessoas, cuja renda se situa abaixo da linha de pobreza, aumentou de 11,1% em 1973 para 14,5% em 1994, ou seja, mais de 38 milhões de norte-americanos, (dos quais) cerca de 15,5 milhões (se encontravam em extrema pobreza).
Alguma coisa parece que vai muito mal numa civilização que é, ao mesmo tempo, a ponta de lança da tecnologia da produtividade e da riqueza mundial e gera e faz crescer dentro de si um “Quarto Mundo”, cruel e desumano, dado que se encontra sem saída, vítima da mais dura insolidariedade diante daquilo que, na aparência, é humanamente o mais elevado do Primeiro Mundo. Essa insolidariedade, definida pela exclusão inclemente, implica um perigoso processo de desumanização. Claro que isto supõe definir o humano e o desumano através de uma hierarquia de bens e valores que nem todo o mundo abraça. No mundo atual não existe unanimidade prática a respeito dos bens e valores que constituem a dignidade humana. As declarações dos direitos humanos (desde a Carta Magna da Inglaterra e do Bill of Rights da Constituição norte- americana em 1776, passando pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa em 1789, para desaguar na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948) vêm encaminhando a humanidade para uma unanimidade teórica. No entanto, ainda estamos longe dela. Por exemplo, a justiça social amplamente entendida é um dos valores mais apreciados entre os seguidores do keynesianismo, na herança socialista, no movimento sindical operário, nos movimentos rurais, nos novos movimentos de gênero, ecológicos, étnicos e de libertação sexual e entre os católicos que valorizam o ensino social da Igreja como “inseparável” da concepção cristã da vida, no social gospel do protestantismo, em muitos movimentos budistas, no legado hindu de Gandhi... Mas Friedrich Hayek, um dos pais do neoliberalismo, afirma que “numa economia de mercado, a idéia de justiça social não faz sentido”. De modo geral, a forte unanimidade pertencente aos direitos humanos chamados de primeira geração perde a nitidez dos contornos quando se chega aos de terceira geração.

2. Quebras ou desvios éticos
O não cumprimento das promessas do TLCAN
Num primeiro momento, a ética oferece o melhor caminho para se chegar a uma primeira resposta aos desafios suscitados pela ALCA, objeto das perspectivas anteriores. E isto porque a ética é a única que pode proporcionar um terreno humano relativamente universal e comum. Como ponto de partida nos ajuda o postulado ético do Vaticano II, segundo o qual a humanidade “sabe muito bem que está em suas mãos dirigir corretamente as forças que (...) desencadeou e que podem esmagá-la ou servi-la”. Este “saber” é um componente crucial da consciência ética. Dele faz parte o direito da cidadania a estar e ser informada para poder tomar decisões responsáveis na vida pública, embora o Concílio se refira aqui a um “saber” sobre as novas possibilidades da humanidade em nossa época, que fundamenta o combinar das próprias informações e o seu posterior discernimento e avaliação ponderada.

O primeiro elemento ético de uma orientação correta do comércio internacional talvez seja uma direção eficaz e eficiente que produza de fato os bens para os quais se diz que está projetada a própria ALCA. A incompetência na hora de projetar e negociar um instrumento jurídico contratual que pudesse produzir resultados econômicos socialmente universalizáveis em forma de bem-estar, na população e no território de um dos três sócios do “tratado-acordo” do TLCAN, o México, constitui uma primeira fratura ética fundamental.

Precisamente o estudo de Alberto Arroyo sobre os sete primeiros anos do TLCAN apresenta como resultado que não se efetivaram as esperanças de garantia de um desenvolvimento sustentável e constante, que o crescimento do investimento estrangeiro e das exportações se manteve confinado a um enclave sem se estender aos outros setores da economia e articular-se com eles, e que a situação da agricultura e a segurança alimentar se deterioraram gravemente. A este fracasso estritamente econômico se acrescenta a falta de benefícios para a maioria da sociedade mexicana: o TLCAN não resultou no México em redução da pobreza, em aumento real dos salários e dos empregos, em decréscimo da emigração para os EUA e tampouco em maior respeito pelos direitos humanos dos imigrantes. Enfim, tudo se passa num cenário no qual se enfraquece a participação democrática cedendo direitos constitucionais sobre a resolução de conflitos entre o bem comum público e os interesses privados das empresas sem consulta popular. Como nos anos 60 e 70 os programas de desenvolvimento e nos anos 80 e começo dos 90 os ajustes estruturais, o TLCAN, precursor da ALCA, se mostrou, a partir de meados dos anos 90, incapaz de irrigar a estrutura majoritária da economia com os extraordinários lucros de uma minoria de empresários. Nenhum governo deve arriscar-se a prometer aquilo que não sabe, não quer ou não pode fazer. Permanecem insatisfeitas as urgentes e vitais necessidades de grandes maiorias que lutam pela sobrevivência. As recentes angústias, lutas e protestos dos produtores de grãos básicos quando está chegando a hora de sua inserção sem barreiras no TLCAN, depois de dez anos, são um eloqüente testemunho desse fiasco.

A falta de transparência democrática
Surge então esta pergunta: por que é que acontece este fracasso econômico, fracasso ao mesmo tempo ético? E a resposta é simples: porque se fizeram falsas promessas, criaram-se falsas expectativas e ocultaram-se os verdadeiros interesses. Tudo isto se traduz numa radical falta de transparência democrática. A verdade e a sua comunicação massiva aos cidadãos são as vítimas desse processo, e aqui se comete uma segunda fratura ética. Só no preâmbulo do TLCAN se fala de “laços especiais de amizade e cooperação entre as nações signatárias”, de “contribuir para o desenvolvimento harmonioso”, de “criar novas oportunidades de emprego, de melhorar as condições de trabalho e os níveis de vida em seus respectivos territórios”, de “levar a cabo todo o anterior de modo congruente com a proteção e a conservação do meio ambiente”, de “preservar a sua capacidade de salvaguardar o bem-estar público”, de “promover o desenvolvimento sustentável”, de “reforçar a elaboração e a aplicação das leis e dos regulamentos em matéria ambiental” e de “proteger, fortalecer e fazer efetivos os direitos dos trabalhadores”.

Esse discurso de solidariedade serviu para articular a imensa publicidade com a qual se vendeu no México o TLCAN. Mas o corpo do Tratado não volta a considerar os postulados solidários do preâmbulo. Pelo contrário, tudo o que se refere à proteção ambiental e aos direitos dos trabalhadores fica fora do Tratado propriamente dito, sendo relegado em anexos de princípios sem concretizações regulamentares e, portanto, sem verdadeiro valor jurídico internacional. A única maneira prevista para promover o desenvolvimento sustentável é através do livre comércio. Vêm à tona no corpo do Tratado os verdadeiros interesses, os interesses particulares das corporações transnacionais que pretendem receber no México tratamento igual ao das empresas nacionais e gozar dos privilégios concedidos comercialmente às nações “mais favorecidas”. Em capítulo nenhum se dá a devida atenção à “assimetria” das economias nacionais, cujos governos estão negociando. Não se reconhece a prevalência da propriedade comunitária da biodiversidade acima da propriedade intelectual expressa nas patentes. Nas controvérsias, subordina-se o direito constitucional a uma arbitragem comercial supranacional. Em caso de incompatibilidade com o GATT, ou com a OMC, sua sucessora, prevalecerá o TLCAN. Em momento algum se leva em conta o livre movimento de trabalhadores através das fronteiras e tampouco se estabelece um acordo sobre a estabilidade dos que já emigraram nem sobre o respeito a seus direitos humanos, de modo a serem equiparados aos cidadãos do país de acolhida. Nem sequer ao Congresso mexicano em seu conjunto e, muito menos, à maioria dos cidadãos mexicanos se deu a conhecer o texto definitivo do Tratado, antes de sua aprovação pelo partido oficial (PRI), ajudado pelo PAN. A falta de transparência democrática é a outra face de uma grande falta de eqüidade.

A falta de eqüidade: pacto de igualdade entre desiguais
Aqui se comete a terceira quebra ética fundamental: a injustiça de estabelecer um pacto que trata de modo igual aqueles que são imensamente desiguais em tecnologia, conhecimento, capital e respaldo de poderio militar, em lugar de dar tratamento preferencial aos mais fracos, assegurando-lhes sobretudo seqüências e ritmos para a liberalização, acompanhados de transferência de tecnologia, de conhecimento e disponibilidade de capitais, através, por exemplo, de uma renegociação da dívida externa que contabilize já os juros pagos como aproximação à amortização do capital. Isto é justamente a negação do princípio de solidariedade, que é uma das bases do caminho para a eqüidade. Quando se faz tudo isto de costas para a população, não só se viola o princípio de solidariedade, mas as partes contratantes se afastam do princípio de representação democrática, uma das garantias de uma certa eqüidade nos acordos internacionais, apresentando o TLCAN na publicidade como se fosse o inevitável grande benfeitor, ao passo que ficam fora do

Tratado as reformas que permitiriam o crescimento do mercado interno, baseado numa melhora substancial do nível de salários e, por conseguinte, do nível de vida da população em sua maioria. Dá-se aqui, além disso, uma reversão de correntes históricas mundiais de governo, que leva a um estreitamento da participação democrática. E isto se consegue mascarando os verdadeiros interesses que o Tratado fortalece e incorpora.
Trata-se de verdadeira opressão da verdade sob a capa das aparências. Com razão, no mesmo dia em que entrou em vigor o TLCAN para o México, estalou em Chiapas a revolta zapatista que arvorou a bandeira dos direitos dos povos indígenas à autonomia no contexto do processo para um México mais democrático. E também se pode entender por que, no fim do primeiro ano de vigência, explodiu violenta crise financeira, impossível de ser prevenida ou controlada precisamente pela progressiva e difusa liberalização do mercado de capitais que já vinha desde 1989 e teve o aval do TLCAN. A fuga de capital especulativo do México foi enorme. Como diz o prêmio Nobel Stiglitz, “os capitais fogem do país em recessão justamente quando o país mais necessita deles”. Exatamente o contrário do princípio de solidariedade. Por isso, o desvelamento da realidade que se move no mercado globalizado de nossos dias é uma obrigação ética de primeira grandeza.

O livre mercado, sem as correções de um Estado tecnicamente competitivo e contrário à corrupção, é desumanizante
O mercado global (não o mercado) é uma instituição econômica de novo tipo, onde as empresas multinacionais que trabalham em rede têm o predomínio e são na sua maioria norte-americanas; são estas, aliás, as mais produtivas, operam com tecnologia informacional de ponta, têm matriz americana, e contam com eficaz apoio do governo da maior superpotência que a história já conheceu. Mas este novo tipo de mercado tampouco é capaz de resolver aquilo que a construção conceptual de caráter utópico do antigo mercado capitalista disse que resolve desde a época de Adam Smith: a questão do bem comum. Como diz Stiglitz, para que “as forças do mercado – a motivação do lucro – (dirijam) a economia para resultados eficientes, como se ela fosse levada por uma mão invisível”, é necessário que se dêem certas condições que fazem esta teoria altamente restritiva: “direitos de propriedade claramente estabelecidos e tribunais que os garantam..., concorrência (perfeita) e perfeita informação”.

O mesmo Stiglitz afirma que as políticas que presidiram a atuação do FMI na AL (e, de modo geral, em todos os países sobre os quais pode ter influência decisiva), assim como as do Banco Mundial (BM) e as do Tesouro dos EUA, políticas conhecidas como o Consenso de Washington e dadas à luz nos anos 80, “se baseavam num modelo simplista de economia de mercado, o modelo de equilíbrio competitivo, no qual opera perfeitamente a mão invisível de Adam Smith. Como neste modelo o Estado não é necessário..., as políticas do Consenso de Washington recebem às vezes o nome de ‘neoliberais’ ou ‘fundamentalismo do mercado’, ressuscitação das políticas do laissez-faire”.

É necessário conceber como uma postura economicamente correta e eticamente ineludível a correção do mercado pelo Estado. Por isso são eticamente inaceitáveis as concessões, semelhantes a uma rendição da sua responsabilidade, que o Estado faz ao mercado no TLCAN. Por exemplo, a cessão da soberania com relação à arbitragem comercial em questões que afetam direitos trabalhistas ou meio-ambientais, a cessão da preferência a empresas nacionais em questão de compras do Estado, a renúncia a obrigar os capitais que entram no país a pagar a taxa Tobin ou a um prazo mínimo de permanência – como fez o Chile durante muitos anos –, a falta de previsão para proteger a propriedade coletiva sobre a biodiversidade... Sem essa correção, vamos entrar de novo no túnel do passado, rumo ao chamado capitalismo primitivo ou selvagem.

Sem um Estado eficaz, que ponha parte da honestidade de seus governantes em sua preparação competente e na dos seus funcionários, sobretudo na hora de arrecadar impostos e planejar o gasto social, e moralmente forte, que castigue ou ao menos isole e estigmatize publicamente a corrupção na medida em que a descobrir com a ajuda da auditoria da sociedade civil, torna-se impossível cumprir o contrato social que permite a convivência pacífica dos cidadãos. Stiglitz afirma claramente, em perspectiva ética, que “uma parte do contrato social contempla a ‘eqüidade’: que os pobres compartilhem os ganhos da sociedade, quando cresce, e que os ricos compartilhem as penúrias sociais, em momentos de crise”, enquanto expõe também com muita clareza que o FMI, o BM e o Tesouro dos EUA, nas políticas do Consenso de Washington, “quase não prestaram atenção a questões de distribuição ou de ‘eqüidade’”. Pressionados – continua dizendo – recorriam à “economia do filtro que afirma que no fim das contas os benefícios do crescimento são filtrados e alcançam finalmente os pobres... (embora) a economia do filtro nunca tivesse sido muito mais do que uma crença, um artigo de fé”. Uma parte do problema consiste em que “o FMI (estimula) uma visão por demais otimista sobre os mercados e muito pessimista sobre o Estado”.

A falta de preocupação pelos pobres: questão de valores
Aprofundando a questão, Stiglitz chega ao problema dos valores em redor da questão dos pobres: “Mas a falta de preocupação com os pobres não era só questão de opiniões sobre o mercado e o Estado, opiniões segundo as quais o mercado arranjaria tudo e o Estado só poderia piorar as coisas; era também questão de valores – até que ponto devemos comprometer-nos com os pobres e quem deveria suportar que riscos”. Claro que a crença sobre o efeito benéfico multitudinário do mercado, em última instância, poderia acontecer a longo prazo. O problema é que para a maioria dos empobrecidos e excluídos de hoje, neste planeta, que necessitam com urgência do seu cumprimento, tal promessa não se realizará num prazo adequado para suas vidas, porque, como já dizia Lord Keynes, “a longo prazo, todos estaremos mortos”.

É semelhante a censura que em 1977 Metz fez ao socialismo real, ou seja, que sacrifica a recordação dos mortos, especialmente dos que morreram vítimas no próprio processo de instauração do socialismo, para o cumprimento, um belo dia, da utopia socialista, da promessa do homem novo e da sociedade sem classes. Porque “na apologia de (qualquer) esperança não se trata de disputar sobre idéias e concepções desencarnadas dos seus sujeitos. Aquilo que se ventila é, acima de tudo, a situação histórico-social concreta dos sujeitos, com suas experiências e sofrimentos, lutas e contradições”.

E antes de Metz, já em 1959 Bloch havia formulado uma crítica profunda à visão do socialismo real, sobretudo o da União Soviética, de considerar já conquistado o sonho do socialismo e a si mesma como a pátria do socialismo, uma pátria “onde ninguém ainda esteve”: a esperança – dizia – só se justifica eticamente através de um esforço cotidiano para preservar “o objetivo alcançável..., a humanização socialista” do perigo da “insuficiência” e dos “desvios amargos”, ou seja, da incompetência, da insuficiência científica e técnica, e do pragmatismo dos interesses nacionalistas, partidários, burocráticos e do corpo dirigente, que esquecem a ética e de modo especial os valores. Por isso afirma Bloch que “o otimismo” (tanto o do socialismo coletivista como o do liberalismo individualista, poderíamos acrescentar) “só se justifica como otimismo militante, não como otimismo concluído; mais ainda, nesta última forma, o otimismo é, diante da miséria do mundo, não só abominável, mas imbecil”. Essas palavras são hoje mais verdadeiras, diante do aumento da miséria no mundo e de sua polarização com a riqueza, como o atestam os estudos do PNUD e sintetizados, com base na sua representação gráfica, por Xabier Gorostiaga na sua célebre frase sobre “a civilização da taça de champanhe”.

3. Exigências éticas que geram obrigações
Atenuar a pobreza e caminhar em busca de sua erradicação, critério ético para os Tratados de Livre Comércio


Somente se a esperança se sustentar eticamente no compromisso com os pobres, no compromisso de caminhar sempre em busca de erradicar quanto possível (assintoticamente) a pobreza, através de medidas econômica e socialmente eficazes, e, também por isso, eticamente corretas, que a diminuíssem palpavelmente ano após ano, é que se justificaria aderir a qualquer tratado ou plano e, concretamente, se justificaria a adesão a uma ALCA corrigida e melhorada na negociação. Caso contrário, estamos de novo frente à hipótese do “fim da história”, hipótese segundo a qual já foi alcançada a meta da história, meta que só se poderia melhorar e aprofundar, e dizer isto da situação do capitalismo informatizado atual, privilegiado pela ALCA, é o mesmo que blasfemar dos pobres (mentir sobre a miséria deles) e insultar a inteligência de quase todo o mundo.

Assim, indo ao particular, temos que trabalhar, se é que há espaço e tempo para isto, e, caso contrário, esforçando-nos para criá-los, visando uma ALCA onde se reconheça o papel do Estado como corretor do mercado, uma ALCA que não abandone a herança do keynesianismo, “cujas lições fundamentais continuam válidas”, uma ALCA que resgate e aplique as lições da crise da Argentina, onde fracassou o discípulo mais fiel do FMI na AL. O próprio FMI reconhece hoje seus erros nas políticas que impôs às economias emergentes em crise, e com as quais sofreram “quase todos os mercados emergentes..., até a Argentina, tanto tempo exibida pelo FMI como o pupilo modelo da reforma”.

Stiglitz oferece uma corroboração indireta das teses de Arroyo, ao afirmar que “inclusive em países que conseguiram certo crescimento, como o México, os benefícios foram açambarcados por 30% e especialmente pelos 10% mais ricos. Os pobres quase nada ganharam, e muitos pioraram de situação”. Não é de estranhar, então, que ele julgue também que o Estado não possa renunciar “a uma de suas responsabilidades cruciais, a saber, manter a economia em pleno emprego”. Uma vez mais ele se afasta das posturas do fundamentalismo de mercado que afirmaria que “o desemprego é um sintoma de uma interferência no livre jogo do mercado”, por exemplo, do poder de sindicatos, movidos pela cobiça de “salários mais altos”.
Stiglitz compara a época atual com o tempo da Grande Depressão dos anos ’30 do século XX. Seriam tempos promissores pelo domínio de uma tecnologia que pode unir a humanidade como nunca antes, e ao mesmo tempo críticos, porque a nova economia informatizada “é mais (capitalista) que qualquer outra economia na história... (e) um número de pessoas, provavelmente em proporção cada vez maior (se vêem excluídas, isto é) não têm importância alguma, nem como produtoras nem como consumidoras”.

Buscar, negociar e implementar alternativas para o desenvolvimento: obrigação ética ineludível

Tudo isto deve afastar-nos de adotar uma postura globalofóbica. Mas, é crucial, sim, afirmar com contundência que as pautas em que se plasmou o TLCAN, nas quais se está costurando o Tratado de Livre Comércio com a América Central (TLCEN ou CAFTA, em inglês) e, sobretudo, as pautas em que se tentará plasmar a ALÇA, não são as únicas possíveis. Há estratégias alternativas para o desenvolvimento,
que diferem não só na ênfase, mas também no plano político, como, por exemplo, estratégias que incluem a reforma agrária, mas não incluem a liberalização do mercado de capitais, que estabelecem políticas de competição antes da privatização, que garantem que a criação de empregos acompanhe a liberalização comercial. Tais alternativas recorreram ao mercado, mas reconhecendo um papel relevante ao Estado; admitiram a importância de reformar, mas com ritmo e continuidade. Viram a mudança não só como uma questão econômica, mas como parte de uma evolução mais ampla na sociedade. Reconheceram que o êxito, a longo prazo, impõe que se dê um amplo respaldo às reformas, e para consegui-lo, os lucros teriam que ser amplamente distribuídos.

Ora, se existem alternativas àquelas que foram esboçadas pelo TLCAN, àquelas que estão sendo esboçadas no TLCEN (CAFTA) e àquelas que se estão projetando para a ALCA, não será obrigação ética da maior importância tratar de negociar, para que essas alternativas, ou algumas destas, sejam incorporadas ao texto definitivo dos tratados? Não será uma obrigação ética da maior importância de nossos governantes e de nossas sociedades civis latino-americanas convocar alianças com os trabalhadores dos EUA e do Canadá e com as outras organizações da sociedade civil que têm lucidez econômica, social e ecológica, e compromisso comprovado com os pobres? Se um economista como Stiglitz, que foi chefe dos assessores econômicos do Presidente Clinton, economista-chefe e Vice-presidente senior do Banco Mundial e, depois, Prêmio Nobel de Economia, precisamente por ter mostrado sob que condições deixa de ser eficiente o equilíbrio competitivo dos mercados, afirma que existem outras alternativas, isto dá maior peso ainda à convicção ética de muita gente de que “é possível outro mundo”, é possível um mundo diferente também no comércio internacional. Leve-se em conta que Stiglitz não se está referindo ao que poderia ser e que nunca houve ainda em parte alguma – isto é, utopicamente –, mas está falando de como se usaram programas, que deram certo apesar da oposição do FMI e do BM, na Etiópia e na Botsuana, e de como se fez a transição de uma pobreza semelhante ou maior que a da Índia para uma prosperidade como a atual, por exemplo na Coréia do Sul e em Taiwan, dois “Tigres Asiáticos”, isto é, dois países de industrialização recente.

A possível obrigação ética de uma recusa
Caso na conjuntura atual não se puder negociar por uma ALCA eqüitativa e solidária, deve-se perguntar se não é necessário, eticamente, recusar a sua atual configuração e exigir que seja submetida a um plebiscito, de modo que a parte da sociedade civil que a recusa tenha tanto acesso aos meios de comunicação para explicar por que a rejeitam, como o têm os partidários da sua aceitação. E nisto seria também necessário exercer imaginação e eficácia para consultar a sociedade civil, do modo como no Brasil se fez com o referendum extra-oficial, para usar o Fórum Social de Porto Alegre e a influência do Presidente Lula nos fóruns mundiais do poder (Davos, G8 etc.) e para contrair alianças que possibilitem fazer tudo isso com maior eficácia, como se está fazendo com o fortalecimento do Mercosul e seu possível tratado com a União Européia.

Para que ajuda internacional sem comércio mundial justo?

Reclamar uma eqüidade fundamental no comércio internacional, por mais ético que seja, parece ousadia fora de todo alcance realista. No entanto, já o Papa Paulo VI ousara dizer, faz mais de 35 anos, que de nada valia a ajuda internacional aos povos em desenvolvimento, “se os seus resultados fossem parcialmente anulados pelo jogo das relações comerciais entre países ricos e países pobres”. O Papa chamava a atenção para as enormes diferenças nos termos de intercâmbio entre os produtos industriais e os agrícolas e as matérias-primas como causa de que “os povos pobres permanecem sempre pobres e os ricos se tornam cada vez mais ricos” (57). Apontava diretamente as relações assimétricas do mercado e dizia que “quando as condições são demasiadamente desiguais de país para país..., os preços que se formam ‘livremente’ no mercado podem acarretar resultados não eqüitativos... (e), por conseguinte, o princípio fundamental do liberalismo, como regra das trocas comerciais..., está aqui em conflito” (58). E, visto que “no comércio entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas as situações são por demais díspares e as liberdades reais muito desiguais, a justiça social exige que o comércio internacional, para ser humano e moral, restabeleça entre as partes ao menos uma certa igualdade de oportunidades” (61). Acrescentava que “esta última é um objetivo a longo prazo. Mas para chegar a ele é preciso criar desde agora uma igualdade real nas discussões e negociações” (61), ponto que nos interessa hoje especialmente enquanto enfrentamos as negociações sobre a ALCA. Afirmava também ser útil estabelecer “convenções internacionais de raio suficientemente vasto” para “regularizar certos preços, garantir certos produtos, manter certas indústrias nascentes” (61). Paulo VI, líder de visão aguda e dotado de carisma profético, se adiantava assim aos posicionamentos da UNCTAD e aos debates no seio do GATT e da OMC. Chegava a afirmar que o comércio internacional “não pode continuar repousando apenas sobre a lei da livre concorrência, que gera também tantas vezes uma ditadura econômica” (59). Finalmente apontava o nacionalismo (62) e o racismo (63) como os maiores obstáculos no caminho para “uma solidariedade mundial cada dia mais eficaz” e afirmava que é esta que “deve permitir a todos os povos tornar-se os artífices do seu próprio destino” no contexto de uma “interdependência na colaboração” (65).

O Princípio-Solidariedade

Aquele a que demos o nome de princípio-solidariedade é o único que pode – convertendo-se em atitudes autênticas e em ações eficazes, ambas na busca de lucidez profissional e competência técnica – superar a falta de corresponsabilidade que está presente na manutenção da assimetria, da extorsão e da chantagem, e da falta de transparência na negociação dos Tratados de Livre Comércio, entre os quais o da ALCA. O preconceito de insolidariedade se baseia na ideologia da superioridade, neste caso, a intrínseca (até inata?) superioridade dos interesses norte- americanos (e canadenses?) sobre os interesses dos povos da AL e do Caribe. E essa superioridade está interligada com o nacionalismo imperial e o racismo. A insolidariedade ou falta de corresponsabilidade impede que se assuma a humanidade comum dos povos das Américas, analisando o seu estado atual na conjuntura global que prevalece, e que haja sensibilidade diante da condição humana em perigo; impede resgatá-la, assumindo o valor da eqüidade nos acordos internacionais e resistindo à assimetria injusta; e impede encarregar-se dela com medidas práticas como as já mencionadas. Nos tratados políticos sobre comércio internacional, assim como nos contratos comerciais do direito privado ou no contrato social subjacente à própria organização global dos Estados e, no futuro, da organização política mundial é insuficiente a mesma perspectiva contratual fundamentada nos interesses particulares; deve-se ter também a perspectiva da aliança, baseada no reconhecimento mútuo. Isto implica, naturalmente, em superar os interesses particulares ou nacionais ou de blocos e entrar no campo da solidariedade, que hoje deveria tender a alcançar a globalidade.

Somente Tratados que constituam e dêem um passo adiante para a globalização da solidariedade e simultaneamente para a globalização do comércio serão econômica, social e ecologicamente convenientes para as partes contratantes, além de justos e válidos do ponto de vista ético. Stiglitz recorda que “os protestos contra a globalização começaram na reunião da OMC, em Seattle, por ser o símbolo mais óbvio das desigualdades globais e da hipocrisia dos países industrializados mais avançados”. E acrescenta:

Pregaram e forçaram a abertura dos mercados nos países subdesenvolvidos para seus produtos industriais, mas continuavam com seus mercados fechados para os produtos dos países em desenvolvimento, como os têxteis e os agrícolas. Pregaram aos países em desenvolvimento para que não dessem subsídios a suas indústrias, mas eles continuaram derramando milhares de milhões em subsídios aos agricultores, impossibilitando os países em desenvolvimento de competir.

O desafio está não só no Fórum Social de Porto Alegre, mas em cada um dos nossos países. Não podemos permitir que nossos governos assinem tratados que se antecipem às negociações de Doha, para debater novas regras de comércio internacional na OMC, e apresentem já fatos consumados, em princípio não reformáveis depois pelos resultados dessas negociações. Nossa resistência deve projetar e apoiar-se em “comunidades de solidariedade”, deve buscar alianças com grupos organizados dos EUA e do Canadá, mas antes de mais nada da AL e do Caribe. Assim o exige “a justiça econômica internacional”. Na realidade, o que está em jogo não é mais apenas “o debate... sobre comércio internacional... ou sobre novas tecnologias..., mas sobre como se faz a transição para a era da informação e da economia global, em função de que valores e sob que mecanismos democráticos de informação, representação e decisão política”.

4. Perspectivas teológicas

Em busca dos fundamentos últimos dos valores e das obrigações éticas
Ao se discorrer sobre perspectivas éticas, quebras, rupturas ou desvios, valores, exigências e obrigações, como aquelas que elaboramos, surge também a pergunta pelo seu fundamento último. Este problema leva pessoas e grupos diversos – confluindo no leito da ética, comum e universalizável, embora não sem fortes matizes culturais – a buscar suas próprias raízes nas convicções não negociáveis que constituem os seus próprios pressupostos transcendentes e que sustentam seus próprios absolutos. Pode tratar-se de uma fé antropológica, secular, que permite fazer uma aposta vital, como também pode tratar-se de uma fé teológica, religiosa, que apresenta igualmente os traços de uma confiança última e se lança a apostas de alcance vital.

A fé antropológica se ordena à humanização ou tende para ela e o faz optando fundamentalmente por “um ‘valor’ ao qual se pensa poder confiar toda a vida e a busca da felicidade possível”. E isto apesar de muitas vezes falhar a experiência humana, isto é, os meios para alcançar esse absoluto. Mesmo assim, mantém-se a fidelidade a esse valor, que toma já de alguma maneira a forma de uma aposta. Por exemplo, pelos pobres e em vista da justiça social e da solidariedade com eles ou inclusive da democracia social de mercado, que acreditam ser a única condição digna da humanidade, existem pessoas que continuam buscando a sua realização com os novos recursos da imaginação, por mais que os movimentos e as revoluções que pretendiam implantá-la tenham fracassado. E nisto continuam apostando toda a sua vida, por mais que os outros os considerem obstinadamente iludidos. E isso, porque acreditam que, em última instância, a história está sempre avançando, ainda que aos trancos e barrancos, para o reino da justiça e da liberdade. Isto é algo que transcende toda uma experiência humana, uma utopia, ou um “dado transcendente”. Outras pessoas, com a mesma opção e igualmente solidárias, procuram fazê-lo mediante a opção pela economia social de mercado e a democracia participativa. Nestes termos, “a ‘fé’ antropológica seria a dimensão do dever-ser, do valor que se quer imprimir na realidade, para que ela responda a nossas expectativas de felicidade”.

A diferença entre a fé antropológica e a fé religiosa não está simplesmente em que aquela não considere a Deus como absoluto em quem se põe a confiança e esta sim, pois é claro que há certa fé religiosa, como a do taoísmo ou do budismo, que não repousam num absoluto com face de Deus, ao menos de um Deus pessoal. E é claro também que tanto no marxismo como no liberalismo, no positivismo científico ou na religião civil norte-americana, se encontram messianismos ou fundamentalismos de estirpe religiosa. A diferença tampouco está no fato de a fé antropológica não se apoiar em testemunhas e a fé religiosa descansar no seu testemunho; não, ambas se sustentam em vidas testemunhais de figuras históricas arquetípicas que de alguma forma realizam o valor dos seus respectivos valores: Moisés, Sócrates, Siddharta (Buda), Quetzalcóatl, Jesus de Nazaré, Mohammad, Ali, Galileu, Lincoln, Gandhi. Finalmente, ambas descansam sobre tradições espirituais que transmitem o legado desses testemunhos e inclusive o preço que muitas pessoas tiveram que pagar por sua fidelidade a eles.

A fé religiosa se diferencia da fé antropológica (cuja estrutura não nega mas assume), pelo fato de que “elabora consciente e explicitamente os dados transcendentes veiculados por essas tradições”, legados testemunhais ou espirituais da humanidade (por exemplo, no caso cristão, a criação do mundo por amor ou a encarnação do Verbo de Deus ou a entrega de Jesus ao Pai e a seu Reino ou a ressurreição de Jesus de Nazaré, crucificado, morto e sepultado) e “crê... ‘absolutamente’ nesses dados”. Nesta fé se acha implícito um compromisso de continuar buscando “a razão da esperança” sem mudar de tradição espiritual, por mais rudes que sejam os desafios da história. E há também “um certo grau de intensidade, de totalidade ou de certeza na aposta, a que a fé antropológica pode ou não chegar”.

Convém recordar, a esta altura, que a fé cristã deu à luz ou, melhor, desentranhou nas igrejas, movida por essa memória de Jesus que é pessoalmente o Espírito Santo no Povo de Deus (cf. Jo 14,26), um Ensino Social Cristão e um Evangelho Social (Social Gospel), cuja reivindicação maior é precisamente que a fé tem uma palavra importante a dizer sobre “a figura deste mundo”, por mais passageira ou efêmera que seja (cf. 1Cor 7,31), e uma esperança a sustentar sobre ela, realizando-as no amor solidário (cf. Gl 5,6).

A fé orienta a mente para soluções plenamente humanas

No caso da esperança cristã diante de acontecimentos históricos como aquele que se configura no caminho para a ALCA, onde vimos de relance o prognóstico de um hemisfério ocidental globalizado ao redor dos privilégios dos já enriquecidos e da exclusão dos empobrecidos, constrange-nos a pergunta para dar razão a essa esperança. Por que não ficamos desanimados e desacorçoados pela magna tarefa da resistência a poderes tão fortes e intransigentes? O Concílio Vaticano II nos anima a partir, na resposta, de uma identificação com “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” da humanidade contemporânea, “sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem”. Medellín (1968), tradução criativa do Concílio Vaticano II em termos culturais latino-americanos e caribenhos, e Puebla (1979) radicalizam essa perspectiva a partir da “opção preferencial pelos pobres”.

O Vaticano II também nos convida, como “Povo de Deus”, a “discernir nos acontecimentos, nas exigências e nos desejos, dos quais participa junto com os seus contemporâneos, os verdadeiros sinais da presença ou dos planos de Deus” (11). É o célebre convite a observar os sinais dos tempos, analisando a sua dimensão humana, pessoal e social, econômica, política e cultural, sua tendência histórica, seu alcance local e nacional, regional e mundial, a polaridade entre a globalização e as identidades diferenciais, mas também descobrindo com olhar profundo como Deus se faz presente, como está neles, que caráter tem a sua presença e o que nos ajudam a desvelar de sua maneira de viver no meio de nós e criar a nossa própria existência.

O Vaticano II está convicto de que “a fé tudo ilumina com nova luz e manifesta o plano sobre toda a vocação” da humanidade e de cada pessoa (11). Mas tem também certeza de que essa iluminação não tem só caráter doutrinal, não se refere só a encontrar explicações sistemáticas sobre a existência humana e a ação divina, mas tem o caráter de guia prático na caminhada humana, caminho para a humanização, e proporciona um critério de humanismo para a busca desses caminhos: “Por isso – diz o Concílio – (a fé) orienta a mente para soluções plenamente humanas” (11), e evidentemente, precisamente por isso, divinas, segundo o coração de Deus.

Deste modo, portanto, o ponto de vista ético não deve ser o único. Esta orientação da mente para soluções plenamente humanas, a que se refere o Vaticano II, é o papel que as religiões com sua fé desempenharam para chegar a convicções éticas, um papel de descobrimento de perspectivas éticas, de rompimentos e desvios, certamente, mas sobretudo de valores, exigências e obrigações. Por exemplo, a célebre regra de ouro da ética – “não faças a outrem o que não queres que te façam” – se encontra nesta ou naquela versão em praticamente todas as religiões da humanidade. Este foi também o papel revelador da fé em Jesus Cristo, enraizada na tradição judaica e enxertada em muitas outras culturas e tradições espirituais da humanidade: um papel levado à perfeita plenitude e a seu fundamento último no mandamento-tarefa do amor – “amemo-nos uns aos outros... porque Deus é amor” (1Jo 4,7-8). Este descobrimento pleno supera inclusive a experiência humana da Lei e dos preceitos com sua dialética de transgressões, que ou nos aprisiona ou nos deixa submersos na culpabilidade: “quem ama o próximo cumpre toda a Lei” (cf. Rm 13,8). Ou seja, não vive mais debaixo da Lei, porque o amor não se move na dialética da Lei, e é mesmo “forte como a morte” (Ct 8,6). Nada há, neste mundo, na experiência humana, tão forte como a morte. No entanto, o filósofo da esperança, Gabriel Marcel, ousa afirmar: “Amar alguém é dizer-lhe: tu não morrerás jamais”. Noutros termos, é vencer a morte por uma esperança animada pelo amor. Com toda a razão diz o Apóstolo Paulo: “O amor jamais acabará” (1Cor 13,8). Por sua vez a fé cristã também descobre que a pessoa que foi e é amada por Deus na vida e na morte de Jesus de Nazaré vive reconciliada consigo mesma, com o mundo criado e com toda a humanidade, isto é, vive na nova atmosfera da reconciliação (cf. 1Cor 15,18-20) e é capaz de livremente optar pelo amor ao próximo (cf. Gl 5,1-6).

As religiões não só descobrem, como também acompanham a humanidade no longo caminho para a realização dos valores cujo descobrimento elas orientaram. Na fé cristã, ocorre também a plenitude desse acompanhamento. Jesus Ressuscitado, cuja vida, paixão e morte descobrimos como o maior valor humano possível ao qual possa uma pessoa aderir – “este é o meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros como eu os amei”. Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,12-13) – é o mesmo que nos diz: “Eu estarei com vocês todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28,20) ou também: “onde houver dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Este estar de Jesus Ressuscitado conosco, segundo o Vaticano II, cria, através do Espírito Santo, a “comunidade fraterna”, certamente na Igreja, mas também faz crescer sem cessar a “solidariedade humana” (32). Inclusive reconhece que essa comunidade fraterna eclesial “também se enriquece com a evolução da vida social” (44), e agradece “a ajuda variada (que recebe de) toda pessoa que promove a comunidade humana na ordem da família, da cultura, da vida econômico-social, da vida política, tanto nacional como internacional” (id.).

Finalmente, as religiões plenificam, isto é, procuram levar à plenitude os valores que descobrem e cujo cumprimento acompanham. Por exemplo, no budismo, pode-se considerar a extinção do desejo, de certa forma, como a superação de interesses particulares e a imersão no grande porvir do universo. Na Bhagavad-Gita, talvez o livro mais importante do hinduísmo, os interesses particulares que brotam da práxis humana também são finalmente superados em confiante abandono a Deus, que tende a libertá-los do egoísmo. Mais claro ainda é o caso da religião de Israel, onde “fazer a justiça e praticar o direito” são levados a uma certa plenitude ao serem proclamados como “conhecer a Deus” verdadeiramente (cf. Jr 22,15-16). Finalmente, em Jesus de Nazaré – o caminho, i. é, o método (metà-odós) para ser mais humano; a verdade, cujo amor evita o assassinato, a máxima injustiça, começando assim a realizar a fraternidade; e a vida, recebida em abundância ou plenitude – alcançam paradoxalmente a plenitude numa pessoa, Jesus de Nazaré, aparentemente fracassado em seu caminho, acusado de mentira (blasfêmia) sobre Deus e assassinado. Vitorioso, no entanto, sobre a morte, e feito para os seus seguidores e para todo o gênero humano “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).

Assim pois, no descobrir os valores, no acompanhar a esforçada tarefa de sua realização, e no plenificar a exigência de que são portadores, levando à plenitude a humanização, há uma experiência de ultimidade, um postulado ou princípio-esperança que para nós recebe o nome de Jesus de Nazaré Ressuscitado e que nem por isso deixa de levar o nome da humanidade, o nome de todas e todos nós, nosso próprio nome: Jesus Cristo, “Filho Amado de Deus”, “o Primogênito de toda a criação” (Cl 1,13.15). E esta esperança é mais profunda que as normas e mais sólida que os imperativos, porque é principalmente indicativa daquilo que somos como humanidade em nossa condição humana e por isso fundante daquilo que devemos vir a ser na história.

Diante da ALCA, a esperança tem o selo da criação de Deus por amor

Para os fiéis cristãos e cristãs, um sinal fundamental da existência e da convivência humanas na história é a condição de criaturas, criadas por um Deus-Amor, Paterno-Materno, e criadas co-criadoras. Por isso, a condição humana é fundamentalmente fraterna e sororal. Por isso, também fazemos uma opção fundamental e preferencial pelos pobres, porque a miséria dos pobres, cada vez mais empobrecidos, é sempre aquilo que faz incrível a paternidade e a maternidade de Deus, através daquilo que significa de negação de fraternidade. Por isso, provocam tamanha indignação as desigualdades em dignidade e em oportunidades que se criaram ao longo da história.

A indignação não brota em primeiro lugar de uma atitude moral, e sim de um coração inflamado pela experiência de filiação e fraternidade, acompanhada – sem intervenções que nos mantenham na minoridade – pela maternidade e paternidade criadoras de Deus. São precisamente estas desigualdades que, cristalizando-se em sistemas estruturalmente opressores que as consagram, apontam para uma liberdade humana que, na sua ambigüidade, ao mesmo tempo acolhe a fraternidade e a rejeita: uma humanidade marcada pela mentira e pelo homicídio nas relações inter-humanas desde o princípio (cf. Gn 3–4 e Jo 8,44). Recordamos a maneira como o Vaticano II fala da consciência ética na humanidade atual, do “saber” que “está em suas mãos dirigir corretamente as forças que ele desencadeou e podem esmagá-lo ou servi-lo” (9). A XXXII Congregação Geral dos Jesuítas, em 1975, deu um passo adiante: “Apesar das possibilidades abertas pela técnica – disse – vê-se cada vez mais claramente que o ser humano não está disposto a pagar o preço de uma sociedade mais justa e mais humana”. Ou, em termos ainda mais contundentes: “o ser humano tem hoje capacidade para fazer o mundo mais justo, mas não o quer de verdade”. Evidentemente, para poder fazer essa denúncia é necessário que se dê a confluência de uma profunda análise das possibilidades humanas em nossa época com a consciência de que a humanidade não deixa de fazer coisas que pode fazer, não deixa de apropriar-se de novas possibilidades e de assumi-las apenas por um erro de cálculo ou por uma estratégia falha, mas também por uma opção maliciosa da liberdade, por essa tenebrosa realidade que chamamos de pecado e que funciona pessoal, histórica e estruturalmente de maneira inapreensível, como “mistério de iniqüidade” (2Ts 2,7).

Ora, a fé na criação por amor, na criação do gênero humano como irmãs e irmãos, pode orientar de forma plenamente humana a nossa resposta ao desafio da ALCA. Na luta por uma negociação eqüitativa deste tratado ou, em última instância, por sua rejeição, se aquela falhar, trata-se da defesa da fraternidade na criação. À luz da fé neste dinamismo criacional que Deus imprimiu no universo e em toda a sua evolução até culminar no aparecimento da humanidade sobre o planeta terra, um dinamismo apaixonado e submetido à tensão do seu amor criador, os bens terrenos têm um destino universal também fraternal e sororal, de forma comunal e societal. Como nos diz o Vaticano II, “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os seres humanos e de todos os povos” e, “conseqüentemente, os bens criados devem chegar a todos de forma eqüitativa, sob a égide da justiça e acompanhados da caridade” (69). Na reunião do G8, realizada não faz muito tempo, o Presidente do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva, propôs a criação de um Fundo Mundial contra a Fome. O Vaticano II, em 1965, já insistira “com todos, particulares e autoridades, para que, lembrando-se da frase dos Padres: Alimenta aquele que morre de fome, porque se não o alimentas, o matas..., comuniquem e ofereçam seus bens ajudando em primeiro lugar os pobres, tanto pessoas como povos, de modo que possam ajudar-se e desenvolver-se por si próprios” (id.).

A fé na criação divina por amor também nos ajuda a enfrentar as objeções de tipo “farisaico” invocadas pelo mercado livre, em sua forma atual, como a melhor forma de ajuda. Por isso, a ALCA e os TLC que a preparam devem superar, para serem aceitos, aquilo que poderíamos denominar como a pretensão de primado do “irmão mais velho” farisaico, que reclama para si a preferência que o pai deveria dar àquele que sempre “serviu sem desobedecer jamais a uma ordem” divina (cf. Lc 15,27-30). Estamos assim debaixo do império da lei, muito longe do amor que gera compaixão e muito perto desse “esquema” que lê a criação e a ação da humanidade no mundo criado em termos de salvação como recompensa divina por méritos, leitura – pré-cristã – que sempre acaba favorecendo os ricos em detrimento dos pobres. Em última instância, esse irmão mais velho queria a herança da propriedade paterna exclusivamente para si e como fundamento de sua reivindicação dava sua virtuosa laboriosidade, merecedora de prêmio, diante da viciosa malandrice do filho mais novo, que, a seu ver, só merecia castigo. Tudo isso também se acha bem próximo da arrogância própria da “teologia da prosperidade”, que considera Deus como próximo de quem vive na prosperidade e essa prosperidade, o direito exclusivo e excludente sobre esta “propriedade” planetária, como sinal inequívoco da bênção de Deus sobre as pessoas que a usufruem.

Deus está na ALCA lutando conosco por uma negociação melhor

Diz um teólogo atual: “Deus está de verdade ali onde a criação encontra o seu caminho, abre passagem através dos obstáculos ou das resistências e alcança sua expressão”. Por conseguinte, Deus não está ali onde está sendo bloqueado o caminho da criação. E isto acontece precisamente quando a perspectiva fundamental sob a qual se assina um tratado comercial, para a troca dos bens surgidos na evolução do planeta e os bens e serviços que a humanidade criou nele, é a perspectiva daqueles que abusam da natureza na criação do meio ambiente humano, sem qualquer escrúpulo, contanto que obtenham lucros do capital cada vez maiores. É o que acontece quando aquilo que predomina na negociação da ALCA é “a civilização do capital”, menosprezando e depreciando “a civilização do trabalho”, polaridades em cuja dialética Ignacio Ellacuría, pouco antes do seu assassínio martirial, via jogar-se a história contemporânea. Com efeito, ao tentar nos vincular nas Américas, de forma assimétrica, mantendo a desigualdade entre o ímpeto desenfreado do capital do Norte, superacumulado e informatizado, e o trabalho do Sul, retribuído sem eqüidade alguma por não ter incorporado a tecnologia informatizada de ponta ao seu produto, a ALCA pode acabar despojando-nos do destino que Deus nos deu em seu plano criacional, ou seja, de nossa singularidade valiosa como povos únicos entre os povos do planeta, para nos reduzir ao destino uniforme de povos excluídos do Quarto Mundo, presos assim na indignidade da miséria.

Em tais circunstâncias, Deus acompanha nossos esforços, e este acompanhamento tem o caráter de fortalecimento da nossa coragem para levar adiante a nossa própria tarefa, procurando nela receber, de Deus e por graça, a sua própria plenitude. Porque, “se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). Através de sua discreta presença no cumprimento dos nossos deveres de solidariedade, Deus nos defende coletivamente da nossa anulação como pessoas e países por parte de outros países constituídos por seus governantes e por sua própria intelligentsia em potências opressoras, embora “se proclamem benfeitoras” (cf. Lc 22,25), oferecendo tratados de livre comércio que os favorecem de forma desigual. Na realidade, “o interesse de Deus vive ‘descentrado’ sobre nós: não lhe interessa a própria honra, mas a nossa felicidade; não se preocupa com a confissão dos lábios, mas com o bem real da vida”. Já o dissera há muitos séculos Santo Irineu: “A glória de Deus é o homem vivo”, e Dom Romero o parafraseou, dizendo: “A glória de Deus é que o pobre viva”. Nesse acompanhamento da sua criação em perigo, “Deus se aventura verdadeiramente..., expõe-se em seu amor e pode ser ferido pela recusa humana a colaborar com Ele, sofrendo assim as injustiças que se cometem contra muitos dos seus filhos e suportando o fracasso de muitos projetos”.

Depois do 11 de setembro, está ocorrendo no mundo uma mudança política de paradigma, do aumento em democratização, em processos de transição para a democracia que estava ocorrendo no último quartel do século XX, e de modo mais acelerado depois do fim da guerra fria, para o autoritarismo, o neomilitarismo e a redução do âmbito de aplicação dos direitos humanos que está acontecendo como efeito direto da guerra total contra o terrorismo. Nesta mudança regressiva de paradigma, a negociação de tratados de comércio como a ALCA corre o risco de se rodear do mesmo fundamentalismo que acompanha a guerra total contra o terrorismo. Os Estados e os povos que não estiverem com os EUA estão contra eles. Sem que este axioma seja compensado e contrastado por outro que diria que aqueles que, pelo menos, não estiverem contra os EUA, estão com eles. Torna-se assim um axioma fundamentalista e até fanaticamente idolátrico. Nesta mudança de paradigma, nós que estamos negociando em posições assimétricas de enorme desigualdade sofremos a ameaça de perder não só a primogenitura, isto é, a igual dignidade humana, mas também toda prova de solidariedade e até a liberdade.

Em tais circunstâncias, Deus nos acompanha na defesa da condição de fraternidade que caracteriza sua criação. Deus “ouve o clamor” de sua criação e da humanidade no mundo criado. Isto quer dizer que Deus está na ALCA lutando conosco por uma negociação justa. Deus é “um Deus que cria por amor, um Deus Pai-Mãe empenhado em nos livrar da obstinada resistência do mundo e dos desvios da liberdade; um Deus que está fazendo tudo o que pode, guiando a natureza e solicitando a nossa cooperação. Deus acompanha nossa história atual, ajuda-nos a descobrir os antivalores que nos ameaçam a partir da ALCA, apóia a nossa liberdade de enfrentar as tentativas de dominação que se refletem na falta de eqüidade que se vê na ALCA. Na tentativa de conseguir uma negociação melhor ou de rejeitá-la, se esse objetivo não puder ser alcançado, não se trata de uma questão meramente técnica ou material. Trata-se de uma questão humana e profundamente espiritual, porque se trata de questão de solidariedade. Orientar humanamente o caminho para sua solução é assunto de nossa fé. Fazê-lo mediante a fé “em Deus criador que cria criadores” não é fanatizar a questão do comércio internacional, mas levá-la ao plano onde estão em jogo a dignidade e a liberdade das filhas e dos filhos de Deus (Rm 8,21) e a busca da justiça do próprio Reino de Deus (Mt 6,33). “Ser co-criadores com Deus na nova reconfiguração do mundo, com seu custo imenso de desarraigamento e de êxodo, de fome, de violências e de morte, tem hoje um nome prioritário: paz e justiça mundial”. Por isso é necessário envidar esforços por uma ALCA que promova a paz e a justiça e rejeitar, se não se puder melhorar na negociação, uma ALCA que nos submeta ao império do fundamentalismo liberal, que nos vá arrebatar a auto-suficiência alimentar e deixar-nos ao capricho dos capitais “voláteis” etc.

Num dos seus textos mais inspirados, o Vaticano II resgatou assim este legado de Jesus, preocupado sempre com o bem do ser humano (Hb 10,38): Deus chama a maioria das pessoas “para que se entreguem ao serviço temporal dos homens e assim preparem o material do Reino dos céus” (38). Porque “a espera de uma nova terra não nos deve fazer esmorecer, mas antes avivar a preocupação de aperfeiçoar esta terra, onde está crescendo o corpo da nova família humana, o qual pode, de alguma maneira, antecipar um vislumbre do novo século”, isto é, o Reino de Deus (39). Do modo como ficar o texto da ALCA e sobretudo do modo como obtivermos ou não uma relação comercial mais fundada na solidariedade e na reciprocidade, isto é, no benefício mútuo, com um acentuado viés de preferência por aqueles que partem na negociação de um ponto mais baixo, disto dependerá que, segundo a nossa fé, preparemos um material melhor ou pior (cf. 1Cor 3,10-15) para o Reino de Deus, que consiste em “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Mas o fato de tudo isto ser “no Espírito Santo” não o faz menos justiça, paz e alegria; ao contrário, mais ainda: porque aqueles que convivem realizando assim essas obras “agradam (certamente) a Deus” mas também “são apreciados pelos homens” (cf. Rm 14,18).

A renovada encarnação do Filho de Deus, princípio-esperança na negociação pela ALCA

Para nós, seguidores de Jesus Cristo, existe, além disso, outro indicador daquilo que somos e, por conseguinte, daquilo que devemos tornar-nos na história. Trata-se da encarnação do Filho de Deus em Jesus de Nazaré, que mostra, assim, de forma plena, a absoluta solidariedade de Deus com sua criação: “Assim mostrou Deus o seu amor pelo mundo: entregando o seu Filho único” (Jo 3,16). A encarnação do Filho de Deus não se deu numa hora qualquer da humanidade, e sim, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4), ou seja, quando a evolução do universo e o desenvolvimento da vida humana sobre o planeta tiveram já o potencial histórico de fazer da encarnação um acontecimento universal “para os judeus e para os gentios”, “para judeus, gregos e bárbaros”, “para senhores e escravos”, “para homens e mulheres” da mesma forma (cf. Gl 3,28; Rm 1,16-17; Ef 3,3-9...).

No entanto, já Santo Irineu falava sobre “o lento acostumar-se do Espírito a habitar na carne”. Santo Inácio de Loyola aconselhava a reconstruir contemplativamente a visão que a Divina Trindade tem do mundo em cada época e reconstruir igualmente na contemplação a sua decisão de que o Filho de Deus se encarne para salvar a humanidade, de modo que as pessoas possam relacionar-se de modo pessoal, isto é, material e espiritualmente com o Filho de Deus, “assim novamente encarnado”. O que significam estas intuições? Talvez estejam sinalizando que a encarnação não acontece apenas numa época privilegiada da história. Sem tirar nada de sua densidade histórica a Jesus de Nazaré e, como diz o Credo, “sob o poder de Pôncio Pilatos”, governador romano da província da Judéia do Império Romano, do qual existe uma tenebrosa crônica histórica, o Espírito Santo desperta em cada geração humana desde então a memória de Jesus (cf. Jo 14,26) e vai conduzindo a humanidade “para a verdade plena” (Jo 16,13). E digo “a humanidade”, e não só a Igreja, porque é um resgate cristão do Vaticano II que o Espírito Santo está presente em toda a humanidade, em suas buscas e em seus progressos, bem como em seus esforços para resistir aos retrocessos e aos terríveis desvios que a fazem atrasar e patinar não poucas vezes.

De certa maneira estamos hoje noutra hora de plenitude da história humana. Uma hora debaixo de muitas ameaças, sem dúvida, mas na qual – se posso dizê-lo parafraseando Torres Queiruga – a vida continua construindo-se “sempre em frente, explorando com a imaginação e analisando com a inteligência as diversas possibilidades, para escolher com liberdade aquelas que realizam mais e melhor” o destino deste planeta. A humanidade está hoje alcançando uma nova plenitude dos tempos na assim chamada globalização. Com a globalização, a humanidade está atravessando um novo limiar. Trata-se, evidentemente, de um passo ambíguo, no qual mais uma vez ela tem diante de si “a vida ou a morte” (Dt 30,15). Mas, pela primeira vez na história da humanidade, a vida pode ter o caráter de solidariedade global, embora possa também sofrer uma falta total de corresponsabilidade. Uma vez mais, a humanidade continua tendo a possibilidade de dar à luz entre dores de parto a liberdade e a glória das filhas e dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21-22). Claro que se trata só de uma possibilidade e continua sendo verdade que em acontecimentos como a ALCA a humanidade está numa encruzilhada entre a escravidão e a liberdade, entre a mútua aceitação e a rejeição, entre a segurança baseada na cobiça (cf. Lc 12,16-21) e a segurança confiante (cf. Lc 12,22-31), entre a míope visão de curto prazo e a visão penetrante do longo prazo, aquela que, através de uma sábia paciência, gera a esperança (cf. Rm 8,25).

“Sai de tua terra natal”: o paradigma negado

Finalmente, há outro indicador teológico, sob o qual se pode também refletir sobre a esperança da qual se deve dar razão diante da ALCA. Trata-se da negação da liberdade para cruzar as fronteiras, implícita neste Tratado. Nele não estamos falando de uma União Americana, nem para um futuro longínquo. Não falamos nem sequer de uma Comunidade Americana, como se falava na Europa, ao se darem os primeiros passos rumo à União Européia (UE), da “Comunidade Européia do Carvão e do Aço”. Aqui, ao contrário, fala-se apenas de uma Área de Livre Comércio. O importante, aqui, são as coisas, as mercadorias, não as pessoas que, com seu trabalho, produzem as coisas. Todavia, desde tempos imemoriais, a terra é um lugar de migrações, um lugar feito para se ir descobrindo e realizando as promessas de vida que ela contém. Ninguém deve, deste modo, construir uma pátria que exclua permanentemente “os estrangeiros” do seu território.

Na tradição judeu-cristã, a história da fé principia
justamente com a promessa da terra. “O Senhor disse a Abraão: Sai da tua terra natal e da casa de teu pai, e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo... Em teu nome serão abençoadas todas as famílias do mundo” (Gn 12,1-3). Trata-se, então, de uma dupla promessa: a terra e a fertilidade, mas, na realidade, as duas estão interligadas. Pois a terra possibilitará a fertilidade. E, como colofão, a bênção para todos os outros povos. Uma bênção, pois, não exclusiva nem excludente. Este princípio da história da fé e da salvação está sintetizado no famoso “credo” histórico do livro do Deuteronômio, que começa com estas famosas palavras: “meu pai era um arameu errante”, referentes a Jacó (cf. Dt 26,5). De certa maneira, ser errante ou peregrino está nas entranhas da humanidade animada de esperança. Ser nômade se entranha no coração de todas as pessoas e de todos os grupos humanos, inclusive dos mais sedentários. E isto porque a história da humanidade sempre foi a história de povos cujas fontes de vida secaram, ou pela exaustão do solo ou por inundações, secas ou outros cataclismos naturais, e que se viram forçados a emigrar para encontrar novas fontes de vida. Noutras épocas, a migração foi forçada por guerras, conquistas, perseguições religiosas, étnicas ou raciais, que forçaram povos inteiros ao exílio. Mas sempre ficou de pé e sem contestação o direito a outra terra, como bem comum para sobreviver e até para encontrar uma vida nova, restaurada, abundante. O êxodo não é só a história da libertação do povo hebreu, que sai do Egito, terra da escravidão, mas é um paradigma de vida para a humanidade. Inclusive o fato salvífico por antonomásia, a morte-ressurreição de Jesus de Nazaré, sua Páscoa, a Bíblia o interpreta como êxodo (cf. Lc 9,31) ou como exílio (cf. Hb 13,12-14).

O drama de hoje é que o povo dos peregrinos, aquele que no século XVII desembarcou no litoral da Nova Inglaterra, fugindo da intolerância e da perseguição religiosa, o povo que se formou na fusão étnica provavelmente a maior da humanidade na base de contínuas migrações, esteja hoje fechando suas fronteiras às etnias latinas e indígenas das Américas, que tentam praticar também o humaníssimo paradigma da peregrinação. O que a história de Israel descobre como seu começo histórico, a epopéia de libertação do Êxodo e a lenta ocupação da terra da promessa, a própria Bíblia o projeta até as origens do gênero humano, radicando a disponibilidade da terra para todos os povos na Palavra criadora de Deus: “crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a” (Gn 1,28). Ao considerar a ALCA e o seu maior pecado, embora de omissão, ou seja, a falta de previsão para um futuro de livre movimento de pessoas trabalhadoras através das fronteiras nas Américas, deve-se proferir também aquela palavra bíblica: “aquilo que Deus uniu, não o separe o ser humano”. Não cabe a ninguém o direito de separar uma parte da humanidade da pátria de todos – o planeta terra. E qualquer regulamentação positiva desse direito não pode anular o destino criador de Deus, a intenção de vida para todos os povos.

5. Conclusão

Recuperar o caminho da civilização da riqueza para
a civilização da pobreza
Diante do desafio que a ALCA representa para os povos da AL, percorremos um longo caminho, talvez muito sinuoso partindo de algumas considerações éticas para outras teológicas, a fim de dar razão da esperança que continua ardendo em nossos corações. “Por sermos humanos, e simplesmente por sermos humanos, somos seres morais, isto é, seres com a glória e com a carga específica de levar sobre si a responsabilidade da própria realização”. Extrapolando nossa carga e nossa glória pessoais para o plano coletivo, onde as coisas dependem das pessoas também em última instância, embora nós estejamos condicionados por estruturas de poder e de força que nem sempre nos favorecem, o risco que corremos numa negociação desigual e cheia de pressões em relação à ALCA é que nos arrebatem a responsabilidade de nos realizarmos como países, e sejamos condenados ao ostracismo, se nos submetermos aos interesses dos mais poderosos.

E isto, como dizíamos no primeiro parágrafo deste artigo, significa um risco tanto para os povos mais fracos como para os mais fortes das Américas. Os povos mais fracos estão arriscando a chance de ter um comércio livre eqüitativo, ou seja, uma das possibilidades mais promissoras de evadir a exclusão de um sistema de capitalismo informatizado, que está levando às últimas conseqüências as leis do lucro, deixando pelo caminho não só milhares, mas talvez milhões e até bilhões de seres humanos, sacrificados no altar levantado em honra do novo Moloc, este novo Mamon, por novos Cresos, cuja fortuna supera incalculavelmente as dos robber barons, dos Rockefeller, dos Carnegie, dos Vanderbilt, dos Mellon, dos Morgan..., do século XX. Mas nós temos a capacidade de nos apropriarmos de uma possibilidade nova e, com o apoio divino, convocar a solidariedade de muitas pessoas, organizações e instituições nos EUA e no Canadá, e na UE. Porque também para os povos do Norte, para o Primeiro Mundo inserido neles como a nau capitânea da sua civilização, a aceitação do seu próprio quarto mundo, suas pobres lanchas salva-vidas com rostos de pilotos afro-americanos e latinos, e a aceitação de nós outros na AL e no Caribe, são uma questão de humanização, por serem uma questão de solidariedade. O desafio a esta solidariedade, o desafio de fazer que “seja possível uma outra ALCA”, significa uma opção nossa, de fortes e fracos, livre e arriscada. “Deus funda e sustenta, mas não substitui a liberdade; cria, mas para que a criatura livre se realize a si mesma. Como já se disse, Deus cria criadores”.

Nenhum de nossos povos, nenhuma das pessoas e dos grupos que os compõem, no Norte, no Centro e no Sul das Américas, está livre de pecado. Não estamos livres nem da cobiça nem do ódio. Nós, concretamente falando, não pertencemos, pelo fato de sermos pobres, a uma mítica idade da inocência. Por isso, dificilmente assumimos – todos – o árduo caminho de busca da “civilização da pobreza” – do austero uso dos bens deste continente e destas ilhas e do mundo inteiro – que tome o lugar da “civilização da riqueza” – uma riqueza impossível de fazer chegar a toda a humanidade sem destruir o planeta – e assim comece a “reverter a história”, como sonhava Ignacio Ellacuría. Sem enveredar por novos caminhos alternativos, que assegurem aos povos da AL um presente menos desigual e, através dele, um futuro com eqüidade, não poderemos caminhar para a reconciliação. Quer sejamos porém especialistas em física ou engenharia, em biologia ou medicina, em tecnologia de ponta, em economia ou sociologia, em antropologia ou ciências políticas, geografia humana ou história, ética ou teologia, se formos crentes em Jesus Cristo, cabe-nos sempre “o ministério da reconciliação”, e a nós foi confiado “o Evangelho da reconciliação”. Por isso, não podemos descansar enquanto não houver reconciliação entre os habitantes das Américas, coisa que nunca se dará, se persistirem as situações de injustiça estrutural sobre as quais o livre comércio quer fundar-se para sempre. “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,18-20), exorta o Apóstolo Paulo, desafiando-nos àquele amor mútuo, ou solidariedade inter-humana, que ratifica o verdadeiro amor a Deus e o livra de qualquer suspeita de inautenticidade ou farisaísmo (cf. 1Jo 3,14-18 e Tg 2,1-9).

“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei em sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo” (Ap 3,20). Se nem na AL e no Caribe, nem nos EUA e no Canadá se responder com suficiente imaginação e prontidão a este apelo quanto à ALCA, será muito provável que o nosso trabalho ardoroso, o trabalho do Fórum Social de Porto Alegre, o trabalho de muitas pessoas de boa vontade, redunde em fracasso. “Sabemos que, infelizmente, o desenvolvimento social deixa sempre de fora milhões – bilhões – de homens e mulheres que morrerão na pobreza”. Isto não significa que aqui termina a nossa tarefa. Deveremos então encontrar um modo de continuar trabalhando com dignidade e esperança, devorados pelo fogo do amor, ao lado de tanta gente condenada à miséria pela exclusão. E enquanto trabalhamos assim, sem deixar um só momento de crer com nossa práxis que “é possível outro mundo”, deveremos ampliar os horizontes da esperança que não “se reduz à redenção social” nem tem seus limites últimos “na história previsível”. Somente assim – confiando em Deus e entregando-nos a nossas irmãs e nossos irmãos em nosso trabalho – poderemos dizer-lhes diante de situações tão dramaticamente difíceis como aquelas que a ALCA ameaça criar: “Que o Deus da esperança vos encha de toda alegria e paz, em vossa vida de fé. Assim, vossa esperança transbordará, pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15,13).


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