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Introdução
e estado da questão
A ALCA: desafio ético e teológico
O estudo sério sobre o processo de negociação que pode desaguar
na assinatura do acordo da ALCA traz à baila um conjunto de
resultados que parecem exigir uma reflexão ética e teológica
sobre o desafio que representam para os povos da América, tanto
para os ricos e fortes do Norte como, de modo especial, para os
mais pobres e fracos da América Latina (AL) e do Caribe.
Os desafios sempre nos levam a pensar e elaborar respostas que os
encarem a partir de níveis diferentes da existência humana. Para
todo ser humano é indispensável fazê-lo no nível ético. O que
se pode pensar sobre a ALCA a partir de um compromisso ético com
a promoção humana dos povos canadenses, estadunidenses,
latino-americanos e caribenhos? Para pessoas, além disso, que crêem
em Jesus Cristo, outro destes níveis é o teológico. O que é
que se pode pensar a partir da nossa fé cristã diante da ALCA?
Como, diante desse tratado, apresentar as razões da nossa esperança
(cf. 1Pd 3,18)? Com efeito, os resultados da análise parecem ter
o potencial de nos levar ao desespero.
Resumo do processo de negociação da ALCA
Vamos resumir esses resultados. Acha-se na negociação
intergovernamental que nos está levando para a Área de Livre Comércio
das Américas um postulado: o mercado é sempre a solução para
todos os problemas do desenvolvimento, enquanto o Estado é sempre
um problema a mais. Este postulado é utilizado, além disso, de
forma ideológica, isto é, do ponto de vista dos interesses dos
que dominam mais e melhor o mercado. Por isso, este postulado
quase dogmático é aplicado com enorme rigor aos países em via
de desenvolvimento e com notável flexibilidade aos já
desenvolvidos. Aqui tem início uma assimetria fundamental na
negociação ou, em palavras menos refinadas, uma notável
desigualdade.
Trata-se de uma negociação que, além disso, se faz debaixo de
extorsão e chantagem. Os grandes subsídios agropecuários dos
EUA, as medidas contra a queda temporária dos preços por
mecanismos extrínsecos ao mercado praticados pelas empresas
transnacionais (medidas antidumping), os mecanismos de proteção
de bens sensíveis para os EUA acham-se subtraídos à negociação
no processo da ALCA, e só podem ser negociados talvez na OMC,
enquanto todos os subsídios e os mecanismos de proteção de bens
sensíveis para a AL estão submetidos a negociações.
Formula-se, às vezes, a chantagem sem disfarces, como quando o
Representante Presidencial dos EUA para o Comércio Internacional,
Robert Zoellick, afirmou numa entrevista, em novembro de 2002,
que, “se Lula não aceitar a ALCA, o Brasil ficará isolado e só
lhe restará negociar com os pingüins da Antártida”. Eis a
prepotência da Realpolitik em que se move a única superpotência
do mundo atual. Só contam os seus interesses: levantar um bloco
econômico comercial no hemisfério ocidental que os proteja do
bloco constituído pela União Européia (UE) e da possível
hegemonia, no futuro, do Japão ou da China no Leste da Ásia.
Algo semelhante ao que se faz comunicando ao mundo que os governos
que não apoiarem a política dos EUA para o Iraque serão
punidos.
Mais grave ainda é que as possíveis disputas entre as empresas
(transnacionais) e os Estados sejam retiradas dos circuitos judiciários
estatais do direito litigioso administrativo, comercial e civil e
transferidas para cortes de arbitragem, cujas normas jurídicas e
cujas sentenças estão acima do direito constitucional dos países.
É evidente a cessão da soberania. E não é que se trate de
entrar na corrente de supranacionalidade para a qual tendem as Nações
Unidas e se reflete, por exemplo, no Protocolo de Kyoto e na Corte
Penal Internacional (ambos não assinados pelos EUA), assim como
na norma de não se declarar unilateralmente guerra sem contar com
uma resolução do Conselho de Segurança (limite transposto pelos
EUA no recente caso do Iraque). Trata-se simplesmente de um abuso
de poder fundamentado outra vez sobre o dogma de que o mercado
protegerá os cidadãos melhor que o Estado. Trata-se de elevar o
“lucro cessante”, isto é, os lucros possíveis, mas não
realizados, de qualquer empresa transnacional radicada nos EUA a
partir do seu lugar apropriado nos cálculos contábeis orçamentários
e nos balanços até um lugar na jurisprudência que dá todos os
direitos ao capital em prejuízo dos trabalhadores, da promoção
do desenvolvimento nacional e da proteção da saúde e do meio
ambiente.
É também muito grave a tendência a reforçar a privatização e
a liberalizar o mercado de bens, sem antes criar novos e sólidos
postos de trabalho que substituam aqueles que, sem dúvida, a nova
competição vai eliminar. E mais grave ainda é a liberalização
do mercado de capitais sem dar a devida atenção a “seqüências
e ritmos” e sem nenhum controle que impeça que a volatilidade
dos capitais “voadores” tenha como resultado brutais crises
financeiras. A longo prazo, com a ALCA, os Estados da AL e do
Caribe nem poderão governar sua economia, nem formular projetos
nacionais próprios que possam integrar-se regionalmente em ritmos
e em condições razoáveis. Mas, além disso, não se prevê que
esse acordo, sendo como parece tão importante, seja submetido a
procedimentos radicalmente democráticos, por exemplo, a um
referendum, como se submeteu na UE a cessão da moeda própria e a
adesão à única moeda, o Euro – entre outras medidas e também
objetivos ao longo do
processo de integração.
Agravando a desigualdade, a ALCA será, em princípio, uma vez
ratificado o tratado, obrigatória e irrevogável para todos os países
que assinarem o tratado, exceto os EUA, cujo Congresso certamente
poderá modificá-lo futuramente. Enfim, também ao contrário do
que ocorreu na UE, não se tomarão medidas financeiras
preferenciais em relação aos países mais fracos, nem se incluirão
no corpo do acordo cláusulas sociais ou trabalhistas, por
exemplo, nem tampouco ecológicas, ponto em que os governos da AL
se esforçam com maior interesse do que o norte-americano para não
perder o que entendem ser vantagens comparativas da mão-de-obra
barata e das normas meio-ambientais pouco exigentes. Uma visão
escandalosamente de curto prazo! Aliás, no quadro da ALCA tudo se
poderá mover livremente: os capitais, os produtos, os serviços;
só não haverá livre trânsito de pessoas através das
fronteiras!
É sobre esses resultados, presentes já na órbita do TLCAN após
dez anos de sua vigência, especialmente no México e no Canadá,
que se pergunta pelas nossas esperanças. Como dizia em seu tempo
o Concílio Vaticano II, “o que pode(m) esperar” desta
proposta de sociedade os povos da AL?
1. Perspectivas éticas
O presente curso da história levanta um desafio ético
A primeira perspectiva que devemos examinar e superar é a de que
tudo isto pertence ao campo de especialidade dos técnicos, dos
conselheiros econômicos e políticos, dos próprios governantes e
seus negociadores, e de que não é de nossa incumbência. Com
isso fecharíamos as portas de toda auditoria ou vigilância
responsável da sociedade civil em matéria econômica sobre o
poder político. Além disso, devemos enfrentar uma espécie de
determinismo da evolução atual do mundo, depois da implosão e
fragmentação dos socialismos realmente existentes, especialmente
do soviético, embora não seja este o caso do chinês que, por
mais inserido que esteja no capitalismo, ainda abarca uma em cada
seis pessoas sobre o planeta. Neste caso, acontece como se a
convicção enunciada por Francis Fukuyama em 1990, na realidade,
fosse também nossa: chegamos ao fim da história, isto é, à sua
meta, e a única coisa que resta a fazer é aprofundar o
capitalismo e aperfeiçoá-lo. Este determinismo (não o de
Fukuyama, mas o nosso), com certo tom fatalista, sobre o triunfo
irreversível do capitalismo e o valor inquestionável de sua
atual etapa de globalização no novo “capitalismo
informacional”, surge do assim chamado desencantamento do mundo
(morte das utopias), apela a um sóbrio realismo social e postula
que é verdadeiramente o império do mercado que pode levar cedo
ou tarde ao reino da liberdade e até ao reino da justiça. No
entanto, pensamos que ainda está de pé aquilo que na perspectiva
ética foi com vigor afirmado pelo Vaticano II: “O presente
curso da história é um desafio que força as pessoas a procurar
uma resposta”.
O fascínio diante da civilização estadunidense construída
sobre pés de barro?
Existe hoje uma espécie de fascínio diante da civilização dos
EUA, diante do assim chamado “estilo americano de vida” (american
way of life), que os eleva praticamente à categoria de única saída
para a humanidade, de mar para o qual confluem todos os seus rios.
No fim das contas, forja-se um novo ídolo diante do qual o mundo
se ajoelha com tanta devoção como aquela dedicada aos deuses das
religiões humanas. Não se pode esquecer, todavia, que, entre
todos os países desenvolvidos, os EUA são aqueles que apresentam
os piores índices em termos de distribuição de renda, índices
que continuam crescendo rumo a uma sempre maior desigualdade.
Com efeito, a proporção da renda nacional que cabe aos 20% da
população com menores rendimentos... caiu de 4,2% em 1968 para
3,6% em 1993, mas os 20% com rendas mais altas viram sua proporção
aumentar de 42,8% naquela data para 48,2% em 1993. Em termos
simples: da renda nacional os ricos recebem dez vezes mais que os
pobres.
Esses dados são ainda mais eloqüentes nas comparações
estabelecidas por Manuel Castells:
A relação entre o salário total dos cargos de direção (nas
empresas estadunidenses) e o salário total dos trabalhadores
passou de 44,8 vezes mais em 1973 para 172,5 vezes mais em 1995. O
1% mais rico aumentou a riqueza em 28,3% no período 1983-1992, ao
passo que os ativos dos 40% inferiores das famílias
norte-americanas caíram 49,7% durante o mesmo período...
(Finalmente) a porcentagem de pessoas, cuja renda se situa abaixo
da linha de pobreza, aumentou de 11,1% em 1973 para 14,5% em 1994,
ou seja, mais de 38 milhões de norte-americanos, (dos quais)
cerca de 15,5 milhões (se encontravam em extrema pobreza).
Alguma coisa parece que vai muito mal numa civilização que é,
ao mesmo tempo, a ponta de lança da tecnologia da produtividade e
da riqueza mundial e gera e faz crescer dentro de si um “Quarto
Mundo”, cruel e desumano, dado que se encontra sem saída, vítima
da mais dura insolidariedade diante daquilo que, na aparência, é
humanamente o mais elevado do Primeiro Mundo. Essa insolidariedade,
definida pela exclusão inclemente, implica um perigoso processo
de desumanização. Claro que isto supõe definir o humano e o
desumano através de uma hierarquia de bens e valores que nem todo
o mundo abraça. No mundo atual não existe unanimidade prática a
respeito dos bens e valores que constituem a dignidade humana. As
declarações dos direitos humanos (desde a Carta Magna da
Inglaterra e do Bill of Rights da Constituição norte- americana
em 1776, passando pela Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Revolução Francesa em 1789, para desaguar na Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948) vêm encaminhando a
humanidade para uma unanimidade teórica. No entanto, ainda
estamos longe dela. Por exemplo, a justiça social amplamente
entendida é um dos valores mais apreciados entre os seguidores do
keynesianismo, na herança socialista, no movimento sindical operário,
nos movimentos rurais, nos novos movimentos de gênero, ecológicos,
étnicos e de libertação sexual e entre os católicos que
valorizam o ensino social da Igreja como “inseparável” da
concepção cristã da vida, no social gospel do protestantismo,
em muitos movimentos budistas, no legado hindu de Gandhi... Mas
Friedrich Hayek, um dos pais do neoliberalismo, afirma que “numa
economia de mercado, a idéia de justiça social não faz
sentido”. De modo geral, a forte unanimidade pertencente aos
direitos humanos chamados de primeira geração perde a nitidez
dos contornos quando se chega aos de terceira geração.
2. Quebras ou desvios éticos
O não cumprimento das promessas do TLCAN
Num primeiro momento, a ética oferece o melhor caminho para se
chegar a uma primeira resposta aos desafios suscitados pela ALCA,
objeto das perspectivas anteriores. E isto porque a ética é a única
que pode proporcionar um terreno humano relativamente universal e
comum. Como ponto de partida nos ajuda o postulado ético do
Vaticano II, segundo o qual a humanidade “sabe muito bem que está
em suas mãos dirigir corretamente as forças que (...)
desencadeou e que podem esmagá-la ou servi-la”. Este
“saber” é um componente crucial da consciência ética. Dele
faz parte o direito da cidadania a estar e ser informada para
poder tomar decisões responsáveis na vida pública, embora o
Concílio se refira aqui a um “saber” sobre as novas
possibilidades da humanidade em nossa época, que fundamenta o
combinar das próprias informações e o seu posterior
discernimento e avaliação ponderada.
O primeiro elemento ético de uma orientação correta do comércio
internacional talvez seja uma direção eficaz e eficiente que
produza de fato os bens para os quais se diz que está projetada a
própria ALCA. A incompetência na hora de projetar e negociar um
instrumento jurídico contratual que pudesse produzir resultados
econômicos socialmente universalizáveis em forma de bem-estar,
na população e no território de um dos três sócios do
“tratado-acordo” do TLCAN, o México, constitui uma primeira
fratura ética fundamental.
Precisamente o estudo de Alberto Arroyo sobre os sete primeiros
anos do TLCAN apresenta como resultado que não se efetivaram as
esperanças de garantia de um desenvolvimento sustentável e
constante, que o crescimento do investimento estrangeiro e das
exportações se manteve confinado a um enclave sem se estender
aos outros setores da economia e articular-se com eles, e que a
situação da agricultura e a segurança alimentar se deterioraram
gravemente. A este fracasso estritamente econômico se acrescenta
a falta de benefícios para a maioria da sociedade mexicana: o
TLCAN não resultou no México em redução da pobreza, em aumento
real dos salários e dos empregos, em decréscimo da emigração
para os EUA e tampouco em maior respeito pelos direitos humanos
dos imigrantes. Enfim, tudo se passa num cenário no qual se
enfraquece a participação democrática cedendo direitos
constitucionais sobre a resolução de conflitos entre o bem comum
público e os interesses privados das empresas sem consulta
popular. Como nos anos 60 e 70 os programas de desenvolvimento e
nos anos 80 e começo dos 90 os ajustes estruturais, o TLCAN,
precursor da ALCA, se mostrou, a partir de meados dos anos 90,
incapaz de irrigar a estrutura majoritária da economia com os
extraordinários lucros de uma minoria de empresários. Nenhum
governo deve arriscar-se a prometer aquilo que não sabe, não
quer ou não pode fazer. Permanecem insatisfeitas as urgentes e
vitais necessidades de grandes maiorias que lutam pela sobrevivência.
As recentes angústias, lutas e protestos dos produtores de grãos
básicos quando está chegando a hora de sua inserção sem
barreiras no TLCAN, depois de dez anos, são um eloqüente
testemunho desse fiasco.
A falta de transparência democrática
Surge então esta pergunta: por que é que acontece este fracasso
econômico, fracasso ao mesmo tempo ético? E a resposta é
simples: porque se fizeram falsas promessas, criaram-se falsas
expectativas e ocultaram-se os verdadeiros interesses. Tudo isto
se traduz numa radical falta de transparência democrática. A
verdade e a sua comunicação massiva aos cidadãos são as vítimas
desse processo, e aqui se comete uma segunda fratura ética. Só
no preâmbulo do TLCAN se fala de “laços especiais de amizade e
cooperação entre as nações signatárias”, de “contribuir
para o desenvolvimento harmonioso”, de “criar novas
oportunidades de emprego, de melhorar as condições de trabalho e
os níveis de vida em seus respectivos territórios”, de
“levar a cabo todo o anterior de modo congruente com a proteção
e a conservação do meio ambiente”, de “preservar a sua
capacidade de salvaguardar o bem-estar público”, de “promover
o desenvolvimento sustentável”, de “reforçar a elaboração
e a aplicação das leis e dos regulamentos em matéria
ambiental” e de “proteger, fortalecer e fazer efetivos os
direitos dos trabalhadores”.
Esse discurso de solidariedade serviu para articular a imensa
publicidade com a qual se vendeu no México o TLCAN. Mas o corpo
do Tratado não volta a considerar os postulados solidários do
preâmbulo. Pelo contrário, tudo o que se refere à proteção
ambiental e aos direitos dos trabalhadores fica fora do Tratado
propriamente dito, sendo relegado em anexos de princípios sem
concretizações regulamentares e, portanto, sem verdadeiro valor
jurídico internacional. A única maneira prevista para promover o
desenvolvimento sustentável é através do livre comércio. Vêm
à tona no corpo do Tratado os verdadeiros interesses, os
interesses particulares das corporações transnacionais que
pretendem receber no México tratamento igual ao das empresas
nacionais e gozar dos privilégios concedidos comercialmente às
nações “mais favorecidas”. Em capítulo nenhum se dá a
devida atenção à “assimetria” das economias nacionais,
cujos governos estão negociando. Não se reconhece a prevalência
da propriedade comunitária da biodiversidade acima da propriedade
intelectual expressa nas patentes. Nas controvérsias,
subordina-se o direito constitucional a uma arbitragem comercial
supranacional. Em caso de incompatibilidade com o GATT, ou com a
OMC, sua sucessora, prevalecerá o TLCAN. Em momento algum se leva
em conta o livre movimento de trabalhadores através das
fronteiras e tampouco se estabelece um acordo sobre a estabilidade
dos que já emigraram nem sobre o respeito a seus direitos
humanos, de modo a serem equiparados aos cidadãos do país de
acolhida. Nem sequer ao Congresso mexicano em seu conjunto e,
muito menos, à maioria dos cidadãos mexicanos se deu a conhecer
o texto definitivo do Tratado, antes de sua aprovação pelo
partido oficial (PRI), ajudado pelo PAN. A falta de transparência
democrática é a outra face de uma grande falta de eqüidade.
A falta de eqüidade: pacto de igualdade entre desiguais
Aqui se comete a terceira quebra ética fundamental: a injustiça
de estabelecer um pacto que trata de modo igual aqueles que são
imensamente desiguais em tecnologia, conhecimento, capital e
respaldo de poderio militar, em lugar de dar tratamento
preferencial aos mais fracos, assegurando-lhes sobretudo seqüências
e ritmos para a liberalização, acompanhados de transferência de
tecnologia, de conhecimento e disponibilidade de capitais, através,
por exemplo, de uma renegociação da dívida externa que
contabilize já os juros pagos como aproximação à amortização
do capital. Isto é justamente a negação do princípio de
solidariedade, que é uma das bases do caminho para a eqüidade.
Quando se faz tudo isto de costas para a população, não só se
viola o princípio de solidariedade, mas as partes contratantes se
afastam do princípio de representação democrática, uma das
garantias de uma certa eqüidade nos acordos internacionais,
apresentando o TLCAN na publicidade como se fosse o inevitável
grande benfeitor, ao passo que ficam fora do
Tratado as reformas que permitiriam o crescimento do mercado
interno, baseado numa melhora substancial do nível de salários
e, por conseguinte, do nível de vida da população em sua
maioria. Dá-se aqui, além disso, uma reversão de correntes históricas
mundiais de governo, que leva a um estreitamento da participação
democrática. E isto se consegue mascarando os verdadeiros
interesses que o Tratado fortalece e incorpora.
Trata-se de verdadeira opressão da verdade sob a capa das aparências.
Com razão, no mesmo dia em que entrou em vigor o TLCAN para o México,
estalou em Chiapas a revolta zapatista que arvorou a bandeira dos
direitos dos povos indígenas à autonomia no contexto do processo
para um México mais democrático. E também se pode entender por
que, no fim do primeiro ano de vigência, explodiu violenta crise
financeira, impossível de ser prevenida ou controlada
precisamente pela progressiva e difusa liberalização do mercado
de capitais que já vinha desde 1989 e teve o aval do TLCAN. A
fuga de capital especulativo do México foi enorme. Como diz o prêmio
Nobel Stiglitz, “os capitais fogem do país em recessão
justamente quando o país mais necessita deles”. Exatamente o
contrário do princípio de solidariedade. Por isso, o
desvelamento da realidade que se move no mercado globalizado de
nossos dias é uma obrigação ética de primeira grandeza.
O livre mercado, sem as correções de um Estado tecnicamente
competitivo e contrário à corrupção, é desumanizante
O mercado global (não o mercado) é uma instituição econômica
de novo tipo, onde as empresas multinacionais que trabalham em
rede têm o predomínio e são na sua maioria norte-americanas; são
estas, aliás, as mais produtivas, operam com tecnologia
informacional de ponta, têm matriz americana, e contam com eficaz
apoio do governo da maior superpotência que a história já
conheceu. Mas este novo tipo de mercado tampouco é capaz de
resolver aquilo que a construção conceptual de caráter utópico
do antigo mercado capitalista disse que resolve desde a época de
Adam Smith: a questão do bem comum. Como diz Stiglitz, para que
“as forças do mercado – a motivação do lucro – (dirijam)
a economia para resultados eficientes, como se ela fosse levada
por uma mão invisível”, é necessário que se dêem certas
condições que fazem esta teoria altamente restritiva:
“direitos de propriedade claramente estabelecidos e tribunais
que os garantam..., concorrência (perfeita) e perfeita informação”.
O mesmo Stiglitz afirma que as políticas que presidiram a atuação
do FMI na AL (e, de modo geral, em todos os países sobre os quais
pode ter influência decisiva), assim como as do Banco Mundial
(BM) e as do Tesouro dos EUA, políticas conhecidas como o
Consenso de Washington e dadas à luz nos anos 80, “se baseavam
num modelo simplista de economia de mercado, o modelo de equilíbrio
competitivo, no qual opera perfeitamente a mão invisível de Adam
Smith. Como neste modelo o Estado não é necessário..., as políticas
do Consenso de Washington recebem às vezes o nome de
‘neoliberais’ ou ‘fundamentalismo do mercado’, ressuscitação
das políticas do laissez-faire”.
É necessário conceber como uma postura economicamente correta e
eticamente ineludível a correção do mercado pelo Estado. Por
isso são eticamente inaceitáveis as concessões, semelhantes a
uma rendição da sua responsabilidade, que o Estado faz ao
mercado no TLCAN. Por exemplo, a cessão da soberania com relação
à arbitragem comercial em questões que afetam direitos
trabalhistas ou meio-ambientais, a cessão da preferência a
empresas nacionais em questão de compras do Estado, a renúncia a
obrigar os capitais que entram no país a pagar a taxa Tobin ou a
um prazo mínimo de permanência – como fez o Chile durante
muitos anos –, a falta de previsão para proteger a propriedade
coletiva sobre a biodiversidade... Sem essa correção, vamos
entrar de novo no túnel do passado, rumo ao chamado capitalismo
primitivo ou selvagem.
Sem um Estado eficaz, que ponha parte da honestidade de seus
governantes em sua preparação competente e na dos seus funcionários,
sobretudo na hora de arrecadar impostos e planejar o gasto social,
e moralmente forte, que castigue ou ao menos isole e estigmatize
publicamente a corrupção na medida em que a descobrir com a
ajuda da auditoria da sociedade civil, torna-se impossível
cumprir o contrato social que permite a convivência pacífica dos
cidadãos. Stiglitz afirma claramente, em perspectiva ética, que
“uma parte do contrato social contempla a ‘eqüidade’: que
os pobres compartilhem os ganhos da sociedade, quando cresce, e
que os ricos compartilhem as penúrias sociais, em momentos de
crise”, enquanto expõe também com muita clareza que o FMI, o
BM e o Tesouro dos EUA, nas políticas do Consenso de Washington,
“quase não prestaram atenção a questões de distribuição ou
de ‘eqüidade’”. Pressionados – continua dizendo –
recorriam à “economia do filtro que afirma que no fim das
contas os benefícios do crescimento são filtrados e alcançam
finalmente os pobres... (embora) a economia do filtro nunca
tivesse sido muito mais do que uma crença, um artigo de fé”.
Uma parte do problema consiste em que “o FMI (estimula) uma visão
por demais otimista sobre os mercados e muito pessimista sobre o
Estado”.
A falta de preocupação pelos pobres: questão de valores
Aprofundando a questão, Stiglitz chega ao problema dos valores em
redor da questão dos pobres: “Mas a falta de preocupação com
os pobres não era só questão de opiniões sobre o mercado e o
Estado, opiniões segundo as quais o mercado arranjaria tudo e o
Estado só poderia piorar as coisas; era também questão de
valores – até que ponto devemos comprometer-nos com os pobres e
quem deveria suportar que riscos”. Claro que a crença sobre o
efeito benéfico multitudinário do mercado, em última instância,
poderia acontecer a longo prazo. O problema é que para a maioria
dos empobrecidos e excluídos de hoje, neste planeta, que
necessitam com urgência do seu cumprimento, tal promessa não se
realizará num prazo adequado para suas vidas, porque, como já
dizia Lord Keynes, “a longo prazo, todos estaremos mortos”.
É semelhante a censura que em 1977 Metz fez ao socialismo real,
ou seja, que sacrifica a recordação dos mortos, especialmente
dos que morreram vítimas no próprio processo de instauração do
socialismo, para o cumprimento, um belo dia, da utopia socialista,
da promessa do homem novo e da sociedade sem classes. Porque “na
apologia de (qualquer) esperança não se trata de disputar sobre
idéias e concepções desencarnadas dos seus sujeitos. Aquilo que
se ventila é, acima de tudo, a situação histórico-social
concreta dos sujeitos, com suas experiências e sofrimentos, lutas
e contradições”.
E antes de Metz, já em 1959 Bloch havia formulado uma crítica
profunda à visão do socialismo real, sobretudo o da União Soviética,
de considerar já conquistado o sonho do socialismo e a si mesma
como a pátria do socialismo, uma pátria “onde ninguém ainda
esteve”: a esperança – dizia – só se justifica eticamente
através de um esforço cotidiano para preservar “o objetivo
alcançável..., a humanização socialista” do perigo da
“insuficiência” e dos “desvios amargos”, ou seja, da
incompetência, da insuficiência científica e técnica, e do
pragmatismo dos interesses nacionalistas, partidários, burocráticos
e do corpo dirigente, que esquecem a ética e de modo especial os
valores. Por isso afirma Bloch que “o otimismo” (tanto o do
socialismo coletivista como o do liberalismo individualista, poderíamos
acrescentar) “só se justifica como otimismo militante, não
como otimismo concluído; mais ainda, nesta última forma, o
otimismo é, diante da miséria do mundo, não só abominável,
mas imbecil”. Essas palavras são hoje mais verdadeiras, diante
do aumento da miséria no mundo e de sua polarização com a
riqueza, como o atestam os estudos do PNUD e sintetizados, com
base na sua representação gráfica, por Xabier Gorostiaga na sua
célebre frase sobre “a civilização da taça de champanhe”.
3. Exigências éticas que geram obrigações
Atenuar a pobreza e caminhar em busca de sua erradicação, critério
ético para os Tratados de Livre Comércio
Somente se a esperança se sustentar eticamente no compromisso com
os pobres, no compromisso de caminhar sempre em busca de erradicar
quanto possível (assintoticamente) a pobreza, através de medidas
econômica e socialmente eficazes, e, também por isso, eticamente
corretas, que a diminuíssem palpavelmente ano após ano, é que
se justificaria aderir a qualquer tratado ou plano e,
concretamente, se justificaria a adesão a uma ALCA corrigida e
melhorada na negociação. Caso contrário, estamos de novo frente
à hipótese do “fim da história”, hipótese segundo a qual já
foi alcançada a meta da história, meta que só se poderia
melhorar e aprofundar, e dizer isto da situação do capitalismo
informatizado atual, privilegiado pela ALCA, é o mesmo que
blasfemar dos pobres (mentir sobre a miséria deles) e insultar a
inteligência de quase todo o mundo.
Assim, indo ao particular, temos que trabalhar, se é que há espaço
e tempo para isto, e, caso contrário, esforçando-nos para criá-los,
visando uma ALCA onde se reconheça o papel do Estado como
corretor do mercado, uma ALCA que não abandone a herança do
keynesianismo, “cujas lições fundamentais continuam válidas”,
uma ALCA que resgate e aplique as lições da crise da Argentina,
onde fracassou o discípulo mais fiel do FMI na AL. O próprio FMI
reconhece hoje seus erros nas políticas que impôs às economias
emergentes em crise, e com as quais sofreram “quase todos os
mercados emergentes..., até a Argentina, tanto tempo exibida pelo
FMI como o pupilo modelo da reforma”.
Stiglitz oferece uma corroboração indireta das teses de Arroyo,
ao afirmar que “inclusive em países que conseguiram certo
crescimento, como o México, os benefícios foram açambarcados
por 30% e especialmente pelos 10% mais ricos. Os pobres quase nada
ganharam, e muitos pioraram de situação”. Não é de
estranhar, então, que ele julgue também que o Estado não possa
renunciar “a uma de suas responsabilidades cruciais, a saber,
manter a economia em pleno emprego”. Uma vez mais ele se afasta
das posturas do fundamentalismo de mercado que afirmaria que “o
desemprego é um sintoma de uma interferência no livre jogo do
mercado”, por exemplo, do poder de sindicatos, movidos pela cobiça
de “salários mais altos”.
Stiglitz compara a época atual com o tempo da Grande Depressão
dos anos ’30 do século XX. Seriam tempos promissores pelo domínio
de uma tecnologia que pode unir a humanidade como nunca antes, e
ao mesmo tempo críticos, porque a nova economia informatizada “é
mais (capitalista) que qualquer outra economia na história... (e)
um número de pessoas, provavelmente em proporção cada vez maior
(se vêem excluídas, isto é) não têm importância alguma, nem
como produtoras nem como consumidoras”.
Buscar, negociar e implementar alternativas para o
desenvolvimento: obrigação ética ineludível
Tudo isto deve afastar-nos de adotar uma postura globalofóbica.
Mas, é crucial, sim, afirmar com contundência que as pautas em
que se plasmou o TLCAN, nas quais se está costurando o Tratado de
Livre Comércio com a América Central (TLCEN ou CAFTA, em inglês)
e, sobretudo, as pautas em que se tentará plasmar a ALÇA, não são
as únicas possíveis. Há estratégias alternativas para o
desenvolvimento,
que diferem não só na ênfase, mas também no plano político,
como, por exemplo, estratégias que incluem a reforma agrária,
mas não incluem a liberalização do mercado de capitais, que
estabelecem políticas de competição antes da privatização,
que garantem que a criação de empregos acompanhe a liberalização
comercial. Tais alternativas recorreram ao mercado, mas
reconhecendo um papel relevante ao Estado; admitiram a importância
de reformar, mas com ritmo e continuidade. Viram a mudança não só
como uma questão econômica, mas como parte de uma evolução
mais ampla na sociedade. Reconheceram que o êxito, a longo prazo,
impõe que se dê um amplo respaldo às reformas, e para
consegui-lo, os lucros teriam que ser amplamente distribuídos.
Ora, se existem alternativas àquelas que foram esboçadas pelo
TLCAN, àquelas que estão sendo esboçadas no TLCEN (CAFTA) e àquelas
que se estão projetando para a ALCA, não será obrigação ética
da maior importância tratar de negociar, para que essas
alternativas, ou algumas destas, sejam incorporadas ao texto
definitivo dos tratados? Não será uma obrigação ética da
maior importância de nossos governantes e de nossas sociedades
civis latino-americanas convocar alianças com os trabalhadores
dos EUA e do Canadá e com as outras organizações da sociedade
civil que têm lucidez econômica, social e ecológica, e
compromisso comprovado com os pobres? Se um economista como
Stiglitz, que foi chefe dos assessores econômicos do Presidente
Clinton, economista-chefe e Vice-presidente senior do Banco
Mundial e, depois, Prêmio Nobel de Economia, precisamente por ter
mostrado sob que condições deixa de ser eficiente o equilíbrio
competitivo dos mercados, afirma que existem outras alternativas,
isto dá maior peso ainda à convicção ética de muita gente de
que “é possível outro mundo”, é possível um mundo
diferente também no comércio internacional. Leve-se em conta que
Stiglitz não se está referindo ao que poderia ser e que nunca
houve ainda em parte alguma – isto é, utopicamente –, mas está
falando de como se usaram programas, que deram certo apesar da
oposição do FMI e do BM, na Etiópia e na Botsuana, e de como se
fez a transição de uma pobreza semelhante ou maior que a da Índia
para uma prosperidade como a atual, por exemplo na Coréia do Sul
e em Taiwan, dois “Tigres Asiáticos”, isto é, dois países
de industrialização recente.
A possível obrigação ética de uma recusa
Caso na conjuntura atual não se puder negociar por uma ALCA eqüitativa
e solidária, deve-se perguntar se não é necessário,
eticamente, recusar a sua atual configuração e exigir que seja
submetida a um plebiscito, de modo que a parte da sociedade civil
que a recusa tenha tanto acesso aos meios de comunicação para
explicar por que a rejeitam, como o têm os partidários da sua
aceitação. E nisto seria também necessário exercer imaginação
e eficácia para consultar a sociedade civil, do modo como no
Brasil se fez com o referendum extra-oficial, para usar o Fórum
Social de Porto Alegre e a influência do Presidente Lula nos fóruns
mundiais do poder (Davos, G8 etc.) e para contrair alianças que
possibilitem fazer tudo isso com maior eficácia, como se está
fazendo com o fortalecimento do Mercosul e seu possível tratado
com a União Européia.
Para que ajuda internacional sem comércio mundial justo?
Reclamar uma eqüidade fundamental no comércio internacional, por
mais ético que seja, parece ousadia fora de todo alcance
realista. No entanto, já o Papa Paulo VI ousara dizer, faz mais
de 35 anos, que de nada valia a ajuda internacional aos povos em
desenvolvimento, “se os seus resultados fossem parcialmente
anulados pelo jogo das relações comerciais entre países ricos e
países pobres”. O Papa chamava a atenção para as enormes
diferenças nos termos de intercâmbio entre os produtos
industriais e os agrícolas e as matérias-primas como causa de
que “os povos pobres permanecem sempre pobres e os ricos se
tornam cada vez mais ricos” (57). Apontava diretamente as relações
assimétricas do mercado e dizia que “quando as condições são
demasiadamente desiguais de país para país..., os preços que se
formam ‘livremente’ no mercado podem acarretar resultados não
eqüitativos... (e), por conseguinte, o princípio fundamental do
liberalismo, como regra das trocas comerciais..., está aqui em
conflito” (58). E, visto que “no comércio entre economias
desenvolvidas e subdesenvolvidas as situações são por demais díspares
e as liberdades reais muito desiguais, a justiça social exige que
o comércio internacional, para ser humano e moral, restabeleça
entre as partes ao menos uma certa igualdade de oportunidades”
(61). Acrescentava que “esta última é um objetivo a longo
prazo. Mas para chegar a ele é preciso criar desde agora uma
igualdade real nas discussões e negociações” (61), ponto que
nos interessa hoje especialmente enquanto enfrentamos as negociações
sobre a ALCA. Afirmava também ser útil estabelecer “convenções
internacionais de raio suficientemente vasto” para
“regularizar certos preços, garantir certos produtos, manter
certas indústrias nascentes” (61). Paulo VI, líder de visão
aguda e dotado de carisma profético, se adiantava assim aos
posicionamentos da UNCTAD e aos debates no seio do GATT e da OMC.
Chegava a afirmar que o comércio internacional “não pode
continuar repousando apenas sobre a lei da livre concorrência,
que gera também tantas vezes uma ditadura econômica” (59).
Finalmente apontava o nacionalismo (62) e o racismo (63) como os
maiores obstáculos no caminho para “uma solidariedade mundial
cada dia mais eficaz” e afirmava que é esta que “deve
permitir a todos os povos tornar-se os artífices do seu próprio
destino” no contexto de uma “interdependência na colaboração”
(65).
O Princípio-Solidariedade
Aquele a que demos o nome de princípio-solidariedade é o único
que pode – convertendo-se em atitudes autênticas e em ações
eficazes, ambas na busca de lucidez profissional e competência técnica
– superar a falta de corresponsabilidade que está presente na
manutenção da assimetria, da extorsão e da chantagem, e da
falta de transparência na negociação dos Tratados de Livre Comércio,
entre os quais o da ALCA. O preconceito de insolidariedade se
baseia na ideologia da superioridade, neste caso, a intrínseca
(até inata?) superioridade dos interesses norte- americanos (e
canadenses?) sobre os interesses dos povos da AL e do Caribe. E
essa superioridade está interligada com o nacionalismo imperial e
o racismo. A insolidariedade ou falta de corresponsabilidade
impede que se assuma a humanidade comum dos povos das Américas,
analisando o seu estado atual na conjuntura global que prevalece,
e que haja sensibilidade diante da condição humana em perigo;
impede resgatá-la, assumindo o valor da eqüidade nos acordos
internacionais e resistindo à assimetria injusta; e impede
encarregar-se dela com medidas práticas como as já mencionadas.
Nos tratados políticos sobre comércio internacional, assim como
nos contratos comerciais do direito privado ou no contrato social
subjacente à própria organização global dos Estados e, no
futuro, da organização política mundial é insuficiente a mesma
perspectiva contratual fundamentada nos interesses particulares;
deve-se ter também a perspectiva da aliança, baseada no
reconhecimento mútuo. Isto implica, naturalmente, em superar os
interesses particulares ou nacionais ou de blocos e entrar no
campo da solidariedade, que hoje deveria tender a alcançar a
globalidade.
Somente Tratados que constituam e dêem um passo adiante para a
globalização da solidariedade e simultaneamente para a globalização
do comércio serão econômica, social e ecologicamente
convenientes para as partes contratantes, além de justos e válidos
do ponto de vista ético. Stiglitz recorda que “os protestos
contra a globalização começaram na reunião da OMC, em Seattle,
por ser o símbolo mais óbvio das desigualdades globais e da
hipocrisia dos países industrializados mais avançados”. E
acrescenta:
Pregaram e forçaram a abertura dos mercados nos países
subdesenvolvidos para seus produtos industriais, mas continuavam
com seus mercados fechados para os produtos dos países em
desenvolvimento, como os têxteis e os agrícolas. Pregaram aos países
em desenvolvimento para que não dessem subsídios a suas indústrias,
mas eles continuaram derramando milhares de milhões em subsídios
aos agricultores, impossibilitando os países em desenvolvimento
de competir.
O desafio está não só no Fórum Social de Porto Alegre, mas em
cada um dos nossos países. Não podemos permitir que nossos
governos assinem tratados que se antecipem às negociações de
Doha, para debater novas regras de comércio internacional na OMC,
e apresentem já fatos consumados, em princípio não reformáveis
depois pelos resultados dessas negociações. Nossa resistência
deve projetar e apoiar-se em “comunidades de solidariedade”,
deve buscar alianças com grupos organizados dos EUA e do Canadá,
mas antes de mais nada da AL e do Caribe. Assim o exige “a justiça
econômica internacional”. Na realidade, o que está em jogo não
é mais apenas “o debate... sobre comércio internacional... ou
sobre novas tecnologias..., mas sobre como se faz a transição
para a era da informação e da economia global, em função de
que valores e sob que mecanismos democráticos de informação,
representação e decisão política”.
4. Perspectivas teológicas
Em busca dos fundamentos últimos dos valores e das obrigações
éticas
Ao se discorrer sobre perspectivas éticas, quebras, rupturas ou
desvios, valores, exigências e obrigações, como aquelas que
elaboramos, surge também a pergunta pelo seu fundamento último.
Este problema leva pessoas e grupos diversos – confluindo no
leito da ética, comum e universalizável, embora não sem fortes
matizes culturais – a buscar suas próprias raízes nas convicções
não negociáveis que constituem os seus próprios pressupostos
transcendentes e que sustentam seus próprios absolutos. Pode
tratar-se de uma fé antropológica, secular, que permite fazer
uma aposta vital, como também pode tratar-se de uma fé teológica,
religiosa, que apresenta igualmente os traços de uma confiança
última e se lança a apostas de alcance vital.
A fé antropológica se ordena à humanização ou tende para ela
e o faz optando fundamentalmente por “um ‘valor’ ao qual se
pensa poder confiar toda a vida e a busca da felicidade possível”.
E isto apesar de muitas vezes falhar a experiência humana, isto
é, os meios para alcançar esse absoluto. Mesmo assim, mantém-se
a fidelidade a esse valor, que toma já de alguma maneira a forma
de uma aposta. Por exemplo, pelos pobres e em vista da justiça
social e da solidariedade com eles ou inclusive da democracia
social de mercado, que acreditam ser a única condição digna da
humanidade, existem pessoas que continuam buscando a sua realização
com os novos recursos da imaginação, por mais que os movimentos
e as revoluções que pretendiam implantá-la tenham fracassado. E
nisto continuam apostando toda a sua vida, por mais que os outros
os considerem obstinadamente iludidos. E isso, porque acreditam
que, em última instância, a história está sempre avançando,
ainda que aos trancos e barrancos, para o reino da justiça e da
liberdade. Isto é algo que transcende toda uma experiência
humana, uma utopia, ou um “dado transcendente”. Outras
pessoas, com a mesma opção e igualmente solidárias, procuram
fazê-lo mediante a opção pela economia social de mercado e a
democracia participativa. Nestes termos, “a ‘fé’ antropológica
seria a dimensão do dever-ser, do valor que se quer imprimir na
realidade, para que ela responda a nossas expectativas de
felicidade”.
A diferença entre a fé antropológica e a fé religiosa não está
simplesmente em que aquela não considere a Deus como absoluto em
quem se põe a confiança e esta sim, pois é claro que há certa
fé religiosa, como a do taoísmo ou do budismo, que não repousam
num absoluto com face de Deus, ao menos de um Deus pessoal. E é
claro também que tanto no marxismo como no liberalismo, no
positivismo científico ou na religião civil norte-americana, se
encontram messianismos ou fundamentalismos de estirpe religiosa. A
diferença tampouco está no fato de a fé antropológica não se
apoiar em testemunhas e a fé religiosa descansar no seu
testemunho; não, ambas se sustentam em vidas testemunhais de
figuras históricas arquetípicas que de alguma forma realizam o
valor dos seus respectivos valores: Moisés, Sócrates, Siddharta
(Buda), Quetzalcóatl, Jesus de Nazaré, Mohammad, Ali, Galileu,
Lincoln, Gandhi. Finalmente, ambas descansam sobre tradições
espirituais que transmitem o legado desses testemunhos e inclusive
o preço que muitas pessoas tiveram que pagar por sua fidelidade a
eles.
A fé religiosa se diferencia da fé antropológica (cuja
estrutura não nega mas assume), pelo fato de que “elabora
consciente e explicitamente os dados transcendentes veiculados por
essas tradições”, legados testemunhais ou espirituais da
humanidade (por exemplo, no caso cristão, a criação do mundo
por amor ou a encarnação do Verbo de Deus ou a entrega de Jesus
ao Pai e a seu Reino ou a ressurreição de Jesus de Nazaré,
crucificado, morto e sepultado) e “crê... ‘absolutamente’
nesses dados”. Nesta fé se acha implícito um compromisso de
continuar buscando “a razão da esperança” sem mudar de tradição
espiritual, por mais rudes que sejam os desafios da história. E há
também “um certo grau de intensidade, de totalidade ou de
certeza na aposta, a que a fé antropológica pode ou não
chegar”.
Convém recordar, a esta altura, que a fé cristã deu à luz ou,
melhor, desentranhou nas igrejas, movida por essa memória de
Jesus que é pessoalmente o Espírito Santo no Povo de Deus (cf.
Jo 14,26), um Ensino Social Cristão e um Evangelho Social (Social
Gospel), cuja reivindicação maior é precisamente que a fé tem
uma palavra importante a dizer sobre “a figura deste mundo”,
por mais passageira ou efêmera que seja (cf. 1Cor 7,31), e uma
esperança a sustentar sobre ela, realizando-as no amor solidário
(cf. Gl 5,6).
A fé orienta a mente para soluções plenamente humanas
No caso da esperança cristã diante de acontecimentos históricos
como aquele que se configura no caminho para a ALCA, onde vimos de
relance o prognóstico de um hemisfério ocidental globalizado ao
redor dos privilégios dos já enriquecidos e da exclusão dos
empobrecidos, constrange-nos a pergunta para dar razão a essa
esperança. Por que não ficamos desanimados e desacorçoados pela
magna tarefa da resistência a poderes tão fortes e
intransigentes? O Concílio Vaticano II nos anima a partir, na
resposta, de uma identificação com “as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias” da humanidade contemporânea,
“sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem”. Medellín
(1968), tradução criativa do Concílio Vaticano II em termos
culturais latino-americanos e caribenhos, e Puebla (1979)
radicalizam essa perspectiva a partir da “opção preferencial
pelos pobres”.
O Vaticano II também nos convida, como “Povo de Deus”, a
“discernir nos acontecimentos, nas exigências e nos desejos,
dos quais participa junto com os seus contemporâneos, os
verdadeiros sinais da presença ou dos planos de Deus” (11). É
o célebre convite a observar os sinais dos tempos, analisando a
sua dimensão humana, pessoal e social, econômica, política e
cultural, sua tendência histórica, seu alcance local e nacional,
regional e mundial, a polaridade entre a globalização e as
identidades diferenciais, mas também descobrindo com olhar
profundo como Deus se faz presente, como está neles, que caráter
tem a sua presença e o que nos ajudam a desvelar de sua maneira
de viver no meio de nós e criar a nossa própria existência.
O Vaticano II está convicto de que “a fé tudo ilumina com nova
luz e manifesta o plano sobre toda a vocação” da humanidade e
de cada pessoa (11). Mas tem também certeza de que essa iluminação
não tem só caráter doutrinal, não se refere só a encontrar
explicações sistemáticas sobre a existência humana e a ação
divina, mas tem o caráter de guia prático na caminhada humana,
caminho para a humanização, e proporciona um critério de
humanismo para a busca desses caminhos: “Por isso – diz o Concílio
– (a fé) orienta a mente para soluções plenamente humanas”
(11), e evidentemente, precisamente por isso, divinas, segundo o
coração de Deus.
Deste modo, portanto, o ponto de vista ético não deve ser o único.
Esta orientação da mente para soluções plenamente humanas, a
que se refere o Vaticano II, é o papel que as religiões com sua
fé desempenharam para chegar a convicções éticas, um papel de
descobrimento de perspectivas éticas, de rompimentos e desvios,
certamente, mas sobretudo de valores, exigências e obrigações.
Por exemplo, a célebre regra de ouro da ética – “não faças
a outrem o que não queres que te façam” – se encontra nesta
ou naquela versão em praticamente todas as religiões da
humanidade. Este foi também o papel revelador da fé em Jesus
Cristo, enraizada na tradição judaica e enxertada em muitas
outras culturas e tradições espirituais da humanidade: um papel
levado à perfeita plenitude e a seu fundamento último no
mandamento-tarefa do amor – “amemo-nos uns aos outros...
porque Deus é amor” (1Jo 4,7-8). Este descobrimento pleno
supera inclusive a experiência humana da Lei e dos preceitos com
sua dialética de transgressões, que ou nos aprisiona ou nos
deixa submersos na culpabilidade: “quem ama o próximo cumpre
toda a Lei” (cf. Rm 13,8). Ou seja, não vive mais debaixo da
Lei, porque o amor não se move na dialética da Lei, e é mesmo
“forte como a morte” (Ct 8,6). Nada há, neste mundo, na
experiência humana, tão forte como a morte. No entanto, o filósofo
da esperança, Gabriel Marcel, ousa afirmar: “Amar alguém é
dizer-lhe: tu não morrerás jamais”. Noutros termos, é vencer
a morte por uma esperança animada pelo amor. Com toda a razão
diz o Apóstolo Paulo: “O amor jamais acabará” (1Cor 13,8).
Por sua vez a fé cristã também descobre que a pessoa que foi e
é amada por Deus na vida e na morte de Jesus de Nazaré vive
reconciliada consigo mesma, com o mundo criado e com toda a
humanidade, isto é, vive na nova atmosfera da reconciliação
(cf. 1Cor 15,18-20) e é capaz de livremente optar pelo amor ao próximo
(cf. Gl 5,1-6).
As religiões não só descobrem, como também acompanham a
humanidade no longo caminho para a realização dos valores cujo
descobrimento elas orientaram. Na fé cristã, ocorre também a
plenitude desse acompanhamento. Jesus Ressuscitado, cuja vida,
paixão e morte descobrimos como o maior valor humano possível ao
qual possa uma pessoa aderir – “este é o meu mandamento: que
vocês se amem uns aos outros como eu os amei”. Ninguém tem
maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo
15,12-13) – é o mesmo que nos diz: “Eu estarei com vocês
todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28,20) ou também:
“onde houver dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei no
meio deles” (Mt 18,20). Este estar de Jesus Ressuscitado
conosco, segundo o Vaticano II, cria, através do Espírito Santo,
a “comunidade fraterna”, certamente na Igreja, mas também faz
crescer sem cessar a “solidariedade humana” (32). Inclusive
reconhece que essa comunidade fraterna eclesial “também se
enriquece com a evolução da vida social” (44), e agradece “a
ajuda variada (que recebe de) toda pessoa que promove a comunidade
humana na ordem da família, da cultura, da vida econômico-social,
da vida política, tanto nacional como internacional” (id.).
Finalmente, as religiões plenificam, isto é, procuram levar à
plenitude os valores que descobrem e cujo cumprimento acompanham.
Por exemplo, no budismo, pode-se considerar a extinção do
desejo, de certa forma, como a superação de interesses
particulares e a imersão no grande porvir do universo. Na
Bhagavad-Gita, talvez o livro mais importante do hinduísmo, os
interesses particulares que brotam da práxis humana também são
finalmente superados em confiante abandono a Deus, que tende a
libertá-los do egoísmo. Mais claro ainda é o caso da religião
de Israel, onde “fazer a justiça e praticar o direito” são
levados a uma certa plenitude ao serem proclamados como
“conhecer a Deus” verdadeiramente (cf. Jr 22,15-16).
Finalmente, em Jesus de Nazaré – o caminho, i. é, o método (metà-odós)
para ser mais humano; a verdade, cujo amor evita o assassinato, a
máxima injustiça, começando assim a realizar a fraternidade; e
a vida, recebida em abundância ou plenitude – alcançam
paradoxalmente a plenitude numa pessoa, Jesus de Nazaré,
aparentemente fracassado em seu caminho, acusado de mentira (blasfêmia)
sobre Deus e assassinado. Vitorioso, no entanto, sobre a morte, e
feito para os seus seguidores e para todo o gênero humano
“caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).
Assim pois, no descobrir os valores, no acompanhar a esforçada
tarefa de sua realização, e no plenificar a exigência de que são
portadores, levando à plenitude a humanização, há uma experiência
de ultimidade, um postulado ou princípio-esperança que para nós
recebe o nome de Jesus de Nazaré Ressuscitado e que nem por isso
deixa de levar o nome da humanidade, o nome de todas e todos nós,
nosso próprio nome: Jesus Cristo, “Filho Amado de Deus”, “o
Primogênito de toda a criação” (Cl 1,13.15). E esta esperança
é mais profunda que as normas e mais sólida que os imperativos,
porque é principalmente indicativa daquilo que somos como
humanidade em nossa condição humana e por isso fundante daquilo
que devemos vir a ser na história.
Diante da ALCA, a esperança tem o selo da criação de Deus por
amor
Para os fiéis cristãos e cristãs, um sinal fundamental da existência
e da convivência humanas na história é a condição de
criaturas, criadas por um Deus-Amor, Paterno-Materno, e criadas
co-criadoras. Por isso, a condição humana é fundamentalmente
fraterna e sororal. Por isso, também fazemos uma opção
fundamental e preferencial pelos pobres, porque a miséria dos
pobres, cada vez mais empobrecidos, é sempre aquilo que faz incrível
a paternidade e a maternidade de Deus, através daquilo que
significa de negação de fraternidade. Por isso, provocam tamanha
indignação as desigualdades em dignidade e em oportunidades que
se criaram ao longo da história.
A indignação não brota em primeiro lugar de uma atitude moral,
e sim de um coração inflamado pela experiência de filiação e
fraternidade, acompanhada – sem intervenções que nos mantenham
na minoridade – pela maternidade e paternidade criadoras de
Deus. São precisamente estas desigualdades que, cristalizando-se
em sistemas estruturalmente opressores que as consagram, apontam
para uma liberdade humana que, na sua ambigüidade, ao mesmo tempo
acolhe a fraternidade e a rejeita: uma humanidade marcada pela
mentira e pelo homicídio nas relações inter-humanas desde o
princípio (cf. Gn 3–4 e Jo 8,44). Recordamos a maneira como o
Vaticano II fala da consciência ética na humanidade atual, do
“saber” que “está em suas mãos dirigir corretamente as forças
que ele desencadeou e podem esmagá-lo ou servi-lo” (9). A XXXII
Congregação Geral dos Jesuítas, em 1975, deu um passo adiante:
“Apesar das possibilidades abertas pela técnica – disse – vê-se
cada vez mais claramente que o ser humano não está disposto a
pagar o preço de uma sociedade mais justa e mais humana”. Ou,
em termos ainda mais contundentes: “o ser humano tem hoje
capacidade para fazer o mundo mais justo, mas não o quer de
verdade”. Evidentemente, para poder fazer essa denúncia é
necessário que se dê a confluência de uma profunda análise das
possibilidades humanas em nossa época com a consciência de que a
humanidade não deixa de fazer coisas que pode fazer, não deixa
de apropriar-se de novas possibilidades e de assumi-las apenas por
um erro de cálculo ou por uma estratégia falha, mas também por
uma opção maliciosa da liberdade, por essa tenebrosa realidade
que chamamos de pecado e que funciona pessoal, histórica e
estruturalmente de maneira inapreensível, como “mistério de
iniqüidade” (2Ts 2,7).
Ora, a fé na criação por amor, na criação do gênero humano
como irmãs e irmãos, pode orientar de forma plenamente humana a
nossa resposta ao desafio da ALCA. Na luta por uma negociação eqüitativa
deste tratado ou, em última instância, por sua rejeição, se
aquela falhar, trata-se da defesa da fraternidade na criação. À
luz da fé neste dinamismo criacional que Deus imprimiu no
universo e em toda a sua evolução até culminar no aparecimento
da humanidade sobre o planeta terra, um dinamismo apaixonado e
submetido à tensão do seu amor criador, os bens terrenos têm um
destino universal também fraternal e sororal, de forma comunal e
societal. Como nos diz o Vaticano II, “Deus destinou a terra e
tudo o que ela contém para uso de todos os seres humanos e de
todos os povos” e, “conseqüentemente, os bens criados devem
chegar a todos de forma eqüitativa, sob a égide da justiça e
acompanhados da caridade” (69). Na reunião do G8, realizada não
faz muito tempo, o Presidente do Brasil, Luiz Inácio “Lula”
da Silva, propôs a criação de um Fundo Mundial contra a Fome. O
Vaticano II, em 1965, já insistira “com todos, particulares e
autoridades, para que, lembrando-se da frase dos Padres: Alimenta
aquele que morre de fome, porque se não o alimentas, o matas...,
comuniquem e ofereçam seus bens ajudando em primeiro lugar os
pobres, tanto pessoas como povos, de modo que possam ajudar-se e
desenvolver-se por si próprios” (id.).
A fé na criação divina por amor também nos ajuda a enfrentar
as objeções de tipo “farisaico” invocadas pelo mercado
livre, em sua forma atual, como a melhor forma de ajuda. Por isso,
a ALCA e os TLC que a preparam devem superar, para serem aceitos,
aquilo que poderíamos denominar como a pretensão de primado do
“irmão mais velho” farisaico, que reclama para si a preferência
que o pai deveria dar àquele que sempre “serviu sem desobedecer
jamais a uma ordem” divina (cf. Lc 15,27-30). Estamos assim
debaixo do império da lei, muito longe do amor que gera compaixão
e muito perto desse “esquema” que lê a criação e a ação
da humanidade no mundo criado em termos de salvação como
recompensa divina por méritos, leitura – pré-cristã – que
sempre acaba favorecendo os ricos em detrimento dos pobres. Em última
instância, esse irmão mais velho queria a herança da
propriedade paterna exclusivamente para si e como fundamento de
sua reivindicação dava sua virtuosa laboriosidade, merecedora de
prêmio, diante da viciosa malandrice do filho mais novo, que, a
seu ver, só merecia castigo. Tudo isso também se acha bem próximo
da arrogância própria da “teologia da prosperidade”, que
considera Deus como próximo de quem vive na prosperidade e essa
prosperidade, o direito exclusivo e excludente sobre esta
“propriedade” planetária, como sinal inequívoco da bênção
de Deus sobre as pessoas que a usufruem.
Deus está na ALCA lutando conosco por uma negociação melhor
Diz um teólogo atual: “Deus está de verdade ali onde a criação
encontra o seu caminho, abre passagem através dos obstáculos ou
das resistências e alcança sua expressão”. Por conseguinte,
Deus não está ali onde está sendo bloqueado o caminho da criação.
E isto acontece precisamente quando a perspectiva fundamental sob
a qual se assina um tratado comercial, para a troca dos bens
surgidos na evolução do planeta e os bens e serviços que a
humanidade criou nele, é a perspectiva daqueles que abusam da
natureza na criação do meio ambiente humano, sem qualquer escrúpulo,
contanto que obtenham lucros do capital cada vez maiores. É o que
acontece quando aquilo que predomina na negociação da ALCA é
“a civilização do capital”, menosprezando e depreciando “a
civilização do trabalho”, polaridades em cuja dialética
Ignacio Ellacuría, pouco antes do seu assassínio martirial, via
jogar-se a história contemporânea. Com efeito, ao tentar nos
vincular nas Américas, de forma assimétrica, mantendo a
desigualdade entre o ímpeto desenfreado do capital do Norte,
superacumulado e informatizado, e o trabalho do Sul, retribuído
sem eqüidade alguma por não ter incorporado a tecnologia
informatizada de ponta ao seu produto, a ALCA pode acabar
despojando-nos do destino que Deus nos deu em seu plano criacional,
ou seja, de nossa singularidade valiosa como povos únicos entre
os povos do planeta, para nos reduzir ao destino uniforme de povos
excluídos do Quarto Mundo, presos assim na indignidade da miséria.
Em tais circunstâncias, Deus acompanha nossos esforços, e este
acompanhamento tem o caráter de fortalecimento da nossa coragem
para levar adiante a nossa própria tarefa, procurando nela
receber, de Deus e por graça, a sua própria plenitude. Porque,
“se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).
Através de sua discreta presença no cumprimento dos nossos
deveres de solidariedade, Deus nos defende coletivamente da nossa
anulação como pessoas e países por parte de outros países
constituídos por seus governantes e por sua própria
intelligentsia em potências opressoras, embora “se proclamem
benfeitoras” (cf. Lc 22,25), oferecendo tratados de livre comércio
que os favorecem de forma desigual. Na realidade, “o interesse
de Deus vive ‘descentrado’ sobre nós: não lhe interessa a própria
honra, mas a nossa felicidade; não se preocupa com a confissão
dos lábios, mas com o bem real da vida”. Já o dissera há
muitos séculos Santo Irineu: “A glória de Deus é o homem
vivo”, e Dom Romero o parafraseou, dizendo: “A glória de Deus
é que o pobre viva”. Nesse acompanhamento da sua criação em
perigo, “Deus se aventura verdadeiramente..., expõe-se em seu
amor e pode ser ferido pela recusa humana a colaborar com Ele,
sofrendo assim as injustiças que se cometem contra muitos dos
seus filhos e suportando o fracasso de muitos projetos”.
Depois do 11 de setembro, está ocorrendo no mundo uma mudança
política de paradigma, do aumento em democratização, em
processos de transição para a democracia que estava ocorrendo no
último quartel do século XX, e de modo mais acelerado depois do
fim da guerra fria, para o autoritarismo, o neomilitarismo e a
redução do âmbito de aplicação dos direitos humanos que está
acontecendo como efeito direto da guerra total contra o
terrorismo. Nesta mudança regressiva de paradigma, a negociação
de tratados de comércio como a ALCA corre o risco de se rodear do
mesmo fundamentalismo que acompanha a guerra total contra o
terrorismo. Os Estados e os povos que não estiverem com os EUA
estão contra eles. Sem que este axioma seja compensado e
contrastado por outro que diria que aqueles que, pelo menos, não
estiverem contra os EUA, estão com eles. Torna-se assim um axioma
fundamentalista e até fanaticamente idolátrico. Nesta mudança
de paradigma, nós que estamos negociando em posições assimétricas
de enorme desigualdade sofremos a ameaça de perder não só a
primogenitura, isto é, a igual dignidade humana, mas também toda
prova de solidariedade e até a liberdade.
Em tais circunstâncias, Deus nos acompanha na defesa da condição
de fraternidade que caracteriza sua criação. Deus “ouve o
clamor” de sua criação e da humanidade no mundo criado. Isto
quer dizer que Deus está na ALCA lutando conosco por uma negociação
justa. Deus é “um Deus que cria por amor, um Deus Pai-Mãe
empenhado em nos livrar da obstinada resistência do mundo e dos
desvios da liberdade; um Deus que está fazendo tudo o que pode,
guiando a natureza e solicitando a nossa cooperação. Deus
acompanha nossa história atual, ajuda-nos a descobrir os
antivalores que nos ameaçam a partir da ALCA, apóia a nossa
liberdade de enfrentar as tentativas de dominação que se
refletem na falta de eqüidade que se vê na ALCA. Na tentativa de
conseguir uma negociação melhor ou de rejeitá-la, se esse
objetivo não puder ser alcançado, não se trata de uma questão
meramente técnica ou material. Trata-se de uma questão humana e
profundamente espiritual, porque se trata de questão de
solidariedade. Orientar humanamente o caminho para sua solução
é assunto de nossa fé. Fazê-lo mediante a fé “em Deus
criador que cria criadores” não é fanatizar a questão do comércio
internacional, mas levá-la ao plano onde estão em jogo a
dignidade e a liberdade das filhas e dos filhos de Deus (Rm 8,21)
e a busca da justiça do próprio Reino de Deus (Mt 6,33). “Ser
co-criadores com Deus na nova reconfiguração do mundo, com seu
custo imenso de desarraigamento e de êxodo, de fome, de violências
e de morte, tem hoje um nome prioritário: paz e justiça
mundial”. Por isso é necessário envidar esforços por uma ALCA
que promova a paz e a justiça e rejeitar, se não se puder
melhorar na negociação, uma ALCA que nos submeta ao império do
fundamentalismo liberal, que nos vá arrebatar a auto-suficiência
alimentar e deixar-nos ao capricho dos capitais “voláteis”
etc.
Num dos seus textos mais inspirados, o Vaticano II resgatou assim
este legado de Jesus, preocupado sempre com o bem do ser humano (Hb
10,38): Deus chama a maioria das pessoas “para que se entreguem
ao serviço temporal dos homens e assim preparem o material do
Reino dos céus” (38). Porque “a espera de uma nova terra não
nos deve fazer esmorecer, mas antes avivar a preocupação de
aperfeiçoar esta terra, onde está crescendo o corpo da nova família
humana, o qual pode, de alguma maneira, antecipar um vislumbre do
novo século”, isto é, o Reino de Deus (39). Do modo como ficar
o texto da ALCA e sobretudo do modo como obtivermos ou não uma
relação comercial mais fundada na solidariedade e na
reciprocidade, isto é, no benefício mútuo, com um acentuado viés
de preferência por aqueles que partem na negociação de um ponto
mais baixo, disto dependerá que, segundo a nossa fé, preparemos
um material melhor ou pior (cf. 1Cor 3,10-15) para o Reino de
Deus, que consiste em “justiça, paz e alegria no Espírito
Santo” (Rm 14,17). Mas o fato de tudo isto ser “no Espírito
Santo” não o faz menos justiça, paz e alegria; ao contrário,
mais ainda: porque aqueles que convivem realizando assim essas
obras “agradam (certamente) a Deus” mas também “são
apreciados pelos homens” (cf. Rm 14,18).
A renovada encarnação do Filho de Deus, princípio-esperança na
negociação pela ALCA
Para nós, seguidores de Jesus Cristo, existe, além disso, outro
indicador daquilo que somos e, por conseguinte, daquilo que
devemos tornar-nos na história. Trata-se da encarnação do Filho
de Deus em Jesus de Nazaré, que mostra, assim, de forma plena, a
absoluta solidariedade de Deus com sua criação: “Assim mostrou
Deus o seu amor pelo mundo: entregando o seu Filho único” (Jo
3,16). A encarnação do Filho de Deus não se deu numa hora
qualquer da humanidade, e sim, na plenitude dos tempos (cf. Gl
4,4), ou seja, quando a evolução do universo e o desenvolvimento
da vida humana sobre o planeta tiveram já o potencial histórico
de fazer da encarnação um acontecimento universal “para os
judeus e para os gentios”, “para judeus, gregos e bárbaros”,
“para senhores e escravos”, “para homens e mulheres” da
mesma forma (cf. Gl 3,28; Rm 1,16-17; Ef 3,3-9...).
No entanto, já Santo Irineu falava sobre “o lento acostumar-se
do Espírito a habitar na carne”. Santo Inácio de Loyola
aconselhava a reconstruir contemplativamente a visão que a Divina
Trindade tem do mundo em cada época e reconstruir igualmente na
contemplação a sua decisão de que o Filho de Deus se encarne
para salvar a humanidade, de modo que as pessoas possam
relacionar-se de modo pessoal, isto é, material e espiritualmente
com o Filho de Deus, “assim novamente encarnado”. O que
significam estas intuições? Talvez estejam sinalizando que a
encarnação não acontece apenas numa época privilegiada da história.
Sem tirar nada de sua densidade histórica a Jesus de Nazaré e,
como diz o Credo, “sob o poder de Pôncio Pilatos”, governador
romano da província da Judéia do Império Romano, do qual existe
uma tenebrosa crônica histórica, o Espírito Santo desperta em
cada geração humana desde então a memória de Jesus (cf. Jo
14,26) e vai conduzindo a humanidade “para a verdade plena” (Jo
16,13). E digo “a humanidade”, e não só a Igreja, porque é
um resgate cristão do Vaticano II que o Espírito Santo está
presente em toda a humanidade, em suas buscas e em seus
progressos, bem como em seus esforços para resistir aos
retrocessos e aos terríveis desvios que a fazem atrasar e patinar
não poucas vezes.
De certa maneira estamos hoje noutra hora de plenitude da história
humana. Uma hora debaixo de muitas ameaças, sem dúvida, mas na
qual – se posso dizê-lo parafraseando Torres Queiruga – a
vida continua construindo-se “sempre em frente, explorando com a
imaginação e analisando com a inteligência as diversas
possibilidades, para escolher com liberdade aquelas que realizam
mais e melhor” o destino deste planeta. A humanidade está hoje
alcançando uma nova plenitude dos tempos na assim chamada
globalização. Com a globalização, a humanidade está
atravessando um novo limiar. Trata-se, evidentemente, de um passo
ambíguo, no qual mais uma vez ela tem diante de si “a vida ou a
morte” (Dt 30,15). Mas, pela primeira vez na história da
humanidade, a vida pode ter o caráter de solidariedade global,
embora possa também sofrer uma falta total de corresponsabilidade.
Uma vez mais, a humanidade continua tendo a possibilidade de dar
à luz entre dores de parto a liberdade e a glória das filhas e
dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21-22). Claro que se trata só de uma
possibilidade e continua sendo verdade que em acontecimentos como
a ALCA a humanidade está numa encruzilhada entre a escravidão e
a liberdade, entre a mútua aceitação e a rejeição, entre a
segurança baseada na cobiça (cf. Lc 12,16-21) e a segurança
confiante (cf. Lc 12,22-31), entre a míope visão de curto prazo
e a visão penetrante do longo prazo, aquela que, através de uma
sábia paciência, gera a esperança (cf. Rm 8,25).
“Sai de tua terra natal”: o paradigma negado
Finalmente, há outro indicador teológico, sob o qual se pode
também refletir sobre a esperança da qual se deve dar razão
diante da ALCA. Trata-se da negação da liberdade para cruzar as
fronteiras, implícita neste Tratado. Nele não estamos falando de
uma União Americana, nem para um futuro longínquo. Não falamos
nem sequer de uma Comunidade Americana, como se falava na Europa,
ao se darem os primeiros passos rumo à União Européia (UE), da
“Comunidade Européia do Carvão e do Aço”. Aqui, ao contrário,
fala-se apenas de uma Área de Livre Comércio. O importante,
aqui, são as coisas, as mercadorias, não as pessoas que, com seu
trabalho, produzem as coisas. Todavia, desde tempos imemoriais, a
terra é um lugar de migrações, um lugar feito para se ir
descobrindo e realizando as promessas de vida que ela contém.
Ninguém deve, deste modo, construir uma pátria que exclua
permanentemente “os estrangeiros” do seu território.
Na tradição judeu-cristã, a história da fé principia
justamente com a promessa da terra. “O Senhor disse a Abraão:
Sai da tua terra natal e da casa de teu pai, e vai para a terra
que te mostrarei. Farei de ti um grande povo... Em teu nome serão
abençoadas todas as famílias do mundo” (Gn 12,1-3). Trata-se,
então, de uma dupla promessa: a terra e a fertilidade, mas, na
realidade, as duas estão interligadas. Pois a terra possibilitará
a fertilidade. E, como colofão, a bênção para todos os outros
povos. Uma bênção, pois, não exclusiva nem excludente. Este
princípio da história da fé e da salvação está sintetizado
no famoso “credo” histórico do livro do Deuteronômio, que
começa com estas famosas palavras: “meu pai era um arameu
errante”, referentes a Jacó (cf. Dt 26,5). De certa maneira,
ser errante ou peregrino está nas entranhas da humanidade animada
de esperança. Ser nômade se entranha no coração de todas as
pessoas e de todos os grupos humanos, inclusive dos mais sedentários.
E isto porque a história da humanidade sempre foi a história de
povos cujas fontes de vida secaram, ou pela exaustão do solo ou
por inundações, secas ou outros cataclismos naturais, e que se
viram forçados a emigrar para encontrar novas fontes de vida.
Noutras épocas, a migração foi forçada por guerras,
conquistas, perseguições religiosas, étnicas ou raciais, que
forçaram povos inteiros ao exílio. Mas sempre ficou de pé e sem
contestação o direito a outra terra, como bem comum para
sobreviver e até para encontrar uma vida nova, restaurada,
abundante. O êxodo não é só a história da libertação do
povo hebreu, que sai do Egito, terra da escravidão, mas é um
paradigma de vida para a humanidade. Inclusive o fato salvífico
por antonomásia, a morte-ressurreição de Jesus de Nazaré, sua
Páscoa, a Bíblia o interpreta como êxodo (cf. Lc 9,31) ou como
exílio (cf. Hb 13,12-14).
O drama de hoje é que o povo dos peregrinos, aquele que no século
XVII desembarcou no litoral da Nova Inglaterra, fugindo da intolerância
e da perseguição religiosa, o povo que se formou na fusão étnica
provavelmente a maior da humanidade na base de contínuas migrações,
esteja hoje fechando suas fronteiras às etnias latinas e indígenas
das Américas, que tentam praticar também o humaníssimo
paradigma da peregrinação. O que a história de Israel descobre
como seu começo histórico, a epopéia de libertação do Êxodo
e a lenta ocupação da terra da promessa, a própria Bíblia o
projeta até as origens do gênero humano, radicando a
disponibilidade da terra para todos os povos na Palavra criadora
de Deus: “crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e
subjugai-a” (Gn 1,28). Ao considerar a ALCA e o seu maior
pecado, embora de omissão, ou seja, a falta de previsão para um
futuro de livre movimento de pessoas trabalhadoras através das
fronteiras nas Américas, deve-se proferir também aquela palavra
bíblica: “aquilo que Deus uniu, não o separe o ser humano”.
Não cabe a ninguém o direito de separar uma parte da humanidade
da pátria de todos – o planeta terra. E qualquer regulamentação
positiva desse direito não pode anular o destino criador de Deus,
a intenção de vida para todos os povos.
5. Conclusão
Recuperar o caminho da civilização da riqueza para
a civilização da pobreza
Diante do desafio que a ALCA representa para os povos da AL,
percorremos um longo caminho, talvez muito sinuoso partindo de
algumas considerações éticas para outras teológicas, a fim de
dar razão da esperança que continua ardendo em nossos corações.
“Por sermos humanos, e simplesmente por sermos humanos, somos
seres morais, isto é, seres com a glória e com a carga específica
de levar sobre si a responsabilidade da própria realização”.
Extrapolando nossa carga e nossa glória pessoais para o plano
coletivo, onde as coisas dependem das pessoas também em última
instância, embora nós estejamos condicionados por estruturas de
poder e de força que nem sempre nos favorecem, o risco que
corremos numa negociação desigual e cheia de pressões em relação
à ALCA é que nos arrebatem a responsabilidade de nos realizarmos
como países, e sejamos condenados ao ostracismo, se nos
submetermos aos interesses dos mais poderosos.
E isto, como dizíamos no primeiro parágrafo deste artigo,
significa um risco tanto para os povos mais fracos como para os
mais fortes das Américas. Os povos mais fracos estão arriscando
a chance de ter um comércio livre eqüitativo, ou seja, uma das
possibilidades mais promissoras de evadir a exclusão de um
sistema de capitalismo informatizado, que está levando às últimas
conseqüências as leis do lucro, deixando pelo caminho não só
milhares, mas talvez milhões e até bilhões de seres humanos,
sacrificados no altar levantado em honra do novo Moloc, este novo
Mamon, por novos Cresos, cuja fortuna supera incalculavelmente as
dos robber barons, dos Rockefeller, dos Carnegie, dos Vanderbilt,
dos Mellon, dos Morgan..., do século XX. Mas nós temos a
capacidade de nos apropriarmos de uma possibilidade nova e, com o
apoio divino, convocar a solidariedade de muitas pessoas, organizações
e instituições nos EUA e no Canadá, e na UE. Porque também
para os povos do Norte, para o Primeiro Mundo inserido neles como
a nau capitânea da sua civilização, a aceitação do seu próprio
quarto mundo, suas pobres lanchas salva-vidas com rostos de
pilotos afro-americanos e latinos, e a aceitação de nós outros
na AL e no Caribe, são uma questão de humanização, por serem
uma questão de solidariedade. O desafio a esta solidariedade, o
desafio de fazer que “seja possível uma outra ALCA”,
significa uma opção nossa, de fortes e fracos, livre e
arriscada. “Deus funda e sustenta, mas não substitui a
liberdade; cria, mas para que a criatura livre se realize a si
mesma. Como já se disse, Deus cria criadores”.
Nenhum de nossos povos, nenhuma das pessoas e dos grupos que os
compõem, no Norte, no Centro e no Sul das Américas, está livre
de pecado. Não estamos livres nem da cobiça nem do ódio. Nós,
concretamente falando, não pertencemos, pelo fato de sermos
pobres, a uma mítica idade da inocência. Por isso, dificilmente
assumimos – todos – o árduo caminho de busca da “civilização
da pobreza” – do austero uso dos bens deste continente e
destas ilhas e do mundo inteiro – que tome o lugar da
“civilização da riqueza” – uma riqueza impossível de
fazer chegar a toda a humanidade sem destruir o planeta – e
assim comece a “reverter a história”, como sonhava Ignacio
Ellacuría. Sem enveredar por novos caminhos alternativos, que
assegurem aos povos da AL um presente menos desigual e, através
dele, um futuro com eqüidade, não poderemos caminhar para a
reconciliação. Quer sejamos porém especialistas em física ou
engenharia, em biologia ou medicina, em tecnologia de ponta, em
economia ou sociologia, em antropologia ou ciências políticas,
geografia humana ou história, ética ou teologia, se formos
crentes em Jesus Cristo, cabe-nos sempre “o ministério da
reconciliação”, e a nós foi confiado “o Evangelho da
reconciliação”. Por isso, não podemos descansar enquanto não
houver reconciliação entre os habitantes das Américas, coisa
que nunca se dará, se persistirem as situações de injustiça
estrutural sobre as quais o livre comércio quer fundar-se para
sempre. “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,18-20), exorta o Apóstolo
Paulo, desafiando-nos àquele amor mútuo, ou solidariedade
inter-humana, que ratifica o verdadeiro amor a Deus e o livra de
qualquer suspeita de inautenticidade ou farisaísmo (cf. 1Jo
3,14-18 e Tg 2,1-9).
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e
abrir a porta, eu entrarei em sua casa e tomaremos a refeição,
eu com ele e ele comigo” (Ap 3,20). Se nem na AL e no Caribe,
nem nos EUA e no Canadá se responder com suficiente imaginação
e prontidão a este apelo quanto à ALCA, será muito provável
que o nosso trabalho ardoroso, o trabalho do Fórum Social de
Porto Alegre, o trabalho de muitas pessoas de boa vontade, redunde
em fracasso. “Sabemos que, infelizmente, o desenvolvimento
social deixa sempre de fora milhões – bilhões – de homens e
mulheres que morrerão na pobreza”. Isto não significa que aqui
termina a nossa tarefa. Deveremos então encontrar um modo de
continuar trabalhando com dignidade e esperança, devorados pelo
fogo do amor, ao lado de tanta gente condenada à miséria pela
exclusão. E enquanto trabalhamos assim, sem deixar um só momento
de crer com nossa práxis que “é possível outro mundo”,
deveremos ampliar os horizontes da esperança que não “se reduz
à redenção social” nem tem seus limites últimos “na história
previsível”. Somente assim – confiando em Deus e
entregando-nos a nossas irmãs e nossos irmãos em nosso trabalho
– poderemos dizer-lhes diante de situações tão dramaticamente
difíceis como aquelas que a ALCA ameaça criar: “Que o Deus da
esperança vos encha de toda alegria e paz, em vossa vida de fé.
Assim, vossa esperança transbordará, pelo poder do Espírito
Santo” (Rm 15,13).
Endereço do Autor:
Facultades de Quetzaltenango de la URL
14 Ave. 0-43, Zona 3
Apartado 87
Totonicapán, Guatemala
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